30.12.23

Karyn

Karyn era conhecida como "A fantasma". Andava sempre vestida de branco, numa roupa larga e vaporosa. As saias - ou calças, ocasionalmente - tapavam-lhe os pés e dava a impressão de levitar a centímetros do pavimento. Era alta, magra e ruiva, fumava cigarros uns atrás dos outros por uma boquilha comprida e só bebia Campari com vinho branco. Não havia na cidade homem que não garantisse ter ido para a cama com ela, coisa inverosímil já que ninguém jamais a viu falar seja com quem fosse mais do que dois Campari seguidos. Enfastiava-se depressa ou tinha pouco a dizer?

Enfastiava-se depressa. As conversas de sedução maçavam-na para lá de toda a descrição. Quando via um tipo mais ou menos "comível" (gostava tão pouco de falar que abreviava palavras) insinuava-se, roupa branca a pairar-lhe à volta como uma nuvem, arranjava maneira de o sentar à mesa dela e observava-o. Começava pelas unhas: estavam cortadas, limpas e bem arranjadas? Se sim, passava aos sapatos. Se não, adeus, até à próxima.  Os sapatos estavam engraxados? Antes disso: eram sapatos ou sapatilhas? Estas não entravam em casa dela. Aqueles sim, se fossem da cor apropriada à hora do dia - castanhos à noite, pretos durante as horas laborais - fossem de atacadores e estivessem tratados.

Passados estes testes, cortava cerce a conversa de chacha. "Querido", começava. "Não percas muito tempo. Não gastes palavras. Se quiseres comer-me vem a minha casa jantar logo à noite. Não precisas de trazer nada, obrigado."

Quando eles chegavam - os que cediam, porque muitos punham-se a milhas imediatamente - eram recebidos por Karyn nua, conduzidos à casa de banho para um banho quente - sem espuma, só água - felados,  envolvidos num roupão branco e levados para a mesa. A comida vinha de fora mas ela nunca o dizia: ao contrário, fingia que estava a terminar de cozinhar. Quando eles se aproximavam dela e lhe tentavam tocar despachava-os para a mesa. "Senta-te e abre a garrafa que está na mesa, pode ser?" A pergunta era retórica, claro. Não havia muita margem, no tom de voz dela.

Durante o jantar falava-se pouco. Karyn explicava ao (às vezes) jovem que não valia a pena esforçar-se por lhe dar um orgasmo. Tratasse do dele e isso chegava-lhe. "Nada me tira tanto a vontade de ir para a cama com um homem como os interrogatórios pré-prandiais". A maioria dos rapazes que ela levava para casa não sabia o que isso significava e dos que sabiam eram raros os que identificavam a piada. Esses tinham direito a repetir a dose. Os outros eram postos na rua mal ela terminava o cigarro pós-coital. "Desculpa, mas nunca nenhum homem dormiu nesta cama e tu não vais ser o primeiro". Uma das coisas que me fez gostar dela foi a maneira que tinha de ser directa sem magoar as pessoas: tudo o que ela dizia parecia uma evidência, algo impossível de se duvidar. Quando se apercia de que o puto (às vezes mal tinham saído da adolescência) não tinha muito taco chamava-lhe um táxi. Aos homens mais maduros poupava essa generosidade. "Não precisam. Se não têm dinheiro que vão à pé. Não quero humilhá-los. Os miúdos estão habituados, recebem dinheiro dos pais. Os mais velhos não. Além disso são os únicos que me dão um bocadinho de prazer e não me apetece pagar-lhes isso."

(Cont.)

Nb.: Creio que já por aqui contei esta história ou uma semelhante. Se tal for o caso, peço aos simpáticos leitores que me desculpem. Quem ma contou foi um tio que já morreu e eu só a ponho na primeira pessoa (às vezes) porque gosto de me imaginar na pele desse tio, irmão mais velho da minha mãe, proscrito da família por ter fugido para Tavira com a criada da casa grávida até às orelhas.

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