Chego a casa à tarde ou deixo-a de manhã e esta vista magnífica é envenenada pelo naufrágio do barco que no outro dia ardeu e ainda ali está, meio afundado. O corpo da senhora que morreu já dele saiu, claro, mas a lembrança das chamas ainda me persegue. Perseguir-me-á sempre, foi horrível de ver ainda antes de saber que a senhora tinha morrido e depois ainda o é mais. Não há bela sem senão e esta magnífica paisagem, com St. Lucie em fundo, cumulus esparsos no céu, barcos fundeados a perder de vista, a promessa das viagens que um dia farei a partir daqui lembra-mo-lo todos os dias. Não há bela sem senão, meu caro. Tudo se paga e eu sei que sim, este dia na praia das Salines, esta chegada a casa, Gerry Mulligan e Chet Baker - Line for Lyons - a cerveja Lorraine fresca, os boudins créoles e as accras que comi no mercado ao meio-dia acompanhados por um punch comprado no mercado ao lado, a ideia de que tudo isto é simultaneamente fugaz e caro e - sobretudo - a de que deve ser partilhado, tudo isto, tudo isto.
Talvez seja esta a chave da solidão: não ter com quem partilhar esta magnífica vista, esta cerveja, esta dor, esta beleza, St. Lucie ao fundo atrás da qual se escondem os Deux Pitons. Há pessoas que vivem bem sendo capazes de armazenar o que vêem e vivem e há quem precise de não o guardar só para si. Há, sobretudo, pessoas - provavelmente nós todos - que por vezes precisam e outras não. A solidão é um estado de geometria variável, como alguns aviões de combate.
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Consegui finalmente acabar os Peligros de la Moralidad. Ainda não me é fácil ler e pergunto-me se isto ficará assim para o resto dos meus dias. Na dúvida continuo a comprar livros. Nunca se sabe.
Dou por mim a ver:
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=cbHr5zVTNeY
Abraço!