2.1.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 01-01-2024

O ano de 2023 - horrível, desprezível, charlatão - foi-se embora da melhor maneira possível: na praia de Anse d'Arlet com o H. P. e família e depois a bordo do S. D. com eles mais o J. D. e filha. Como é que um ano tão mau  consegue redimir-se desta maneira? Como é que cinquenta e duas semanas das quais pouco mais de uma dúzia se aproveita conseguem fazer um triplo mortal atrás e fazer-me crer que um ano que começa assim (refiro-me ao que estava por vir) não será melhor do que esse pantomineiro que fica para trás?

Não sou grande fã do optimismo. É o meu principal defeito, ex-aequo com a sua irmã gémea, a esperança. Mas bolas!, começar um ano assim e não acreditar é  como ter a mulher que amamos em segredo a fazer-nos sinais e pensar que é para outro. Atira-te a ela, raios. Deixa-te das paneleirices de amar para a gaveta, de a amar em voz baixa, de disfarçar feito mau mimo. Atira-te de cabeça da prancha dos dez metros mesmo sem saberes a profundidade da água. Tens trezentos e sessenta e seis dias pela proa para a descobrires.

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Hoje em Fort-de-France o único sítio aberto era o Impératrice. Podia ser pior (isto é uma litote. Aquilo é lindo). Brinquei com o barman - um jovem vivaço, com duas coisas espetadas  nas orelhas que pareciam punaises aos quais tivesse caído a capa de plástico - e em prémio ganhei um café,  oferta não da casa mas dele (como se não fosse a mesma coisa, meu caro. O que tu sabes acordado já eu esqueci a dormir). 

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Antes disso comi frango grelhado numa roulotte mesmo ao lado da marina.  Creio que era a única coisa aberta num raio de com quilómetros, exceptuando os snacks e fast food das bombas de gasolina (a ilha tem setenta de norte a sul).

A mescla habitual: uma senhora, dois ou três crackómanos, meia dúzia de bêbados, meia dúzia (diferente) de brancos sentados numa mesa àparte, música horrível e aos berros, frango excelente, cervejas de vinte e cinco centilitros. Já estava quase a acabar o frango - duas coxas e duas asas, um euro a peça - e a senhora, que até ali tinha estado a dançar sozinha, veio cravar-me uma cerveja. Ofereci-lha, claro. Logo a seguir pus-me a andar (ou melhor: coloquei-me a andar). Não há qualquer relação entre a senhora cravar-me a cerveja e o meu pisganço: este já estava previsto e na verdade sentia uma imensa ternura pela mulher, que era feia (parecia um homem) e me parecia ali um pouco perdida, rejeitada apesar de visivelmente fazer parte do décor.

Cheguei a Fort-de-France dando a maior e mais demorada volta possível, vi o Impératrice aberto, agradeci mentalmente à senhora (penso realmente que era uma, a quem tinha saído um número não premiado na lotaria genética) e bebi dois runs velhos.  Depaz, bons mas demasiado suave para as circunstâncias. Era a única marca de rum velho que o rapaz dos punaises tinha e a verdade é que a senhora da roulotte me evacuou rapidamente o espírito e comecei - no mesmo élan de ternura - a ligar às minhas amigas a quem-mais-quero. Só a A. I. me respondeu, prova mais do que provada de que a combinação de ternura, acaso e melancolia nunca falha - ao contrário de um número de telefone martiniquês, que levanta suspeitas imerecidas. 

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Envelhecer consiste em detestar cada vez mais qualquer coisa e ao mesmo tempo suportar mais facilmente quem gosta.

O envelhecimento não passa de uma tripla dissonância cognitiva: o que somos, o que vemos e o que sabemos.

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