20.1.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 20-01-2024

Passo o dia deitado, como se a dor fosse um tapete. A imagem é falsa: isto só dói em certos momentos. O resto do tempo está tudo na paz do senhor. A água e o casco entretêm-se em animada conversa. A ventoinha fornece-lhes música de fundo, música que não pus ainda porque não me apetece ouvir nada. Tão pouco me apetece ler. Depois do Modiano que acabei ontem (Chevreuse, uma obra-prima) o Sueño de Ulises parece pesadão, com a escrita demasiado elaborada, tricot, rodriguinhos. O raio da chuva não tem maneira de se conformar ao mês e parar, nem de se decidir: ora agora chove ora agora faz sol. Acabo por deixar de abrir as escotilhas. Fiquem fechadas e as ventoinhas que trabalhem. Gosto de ouvir esta conversa do casco com a água,  pouco ritmada, com níveis de som bastante variados. Por vezes vem um balanço ou outro, sempre suave. O sueco que tinha as adriças a bater desalmadamente ou se foi embora ou tratou delas e já não se ouve esse detestável ruído. O S. D. está limpo, arrumado, tranquilo. O J. S. deixou de fazer os melhores sabões do mundo e foi para a Suíça fazer não sei o quê. Isto é uma maçada permanente, encontrar sabonetes decentes. A prima da A. I. morreu de cancro, este emigra. Que acontecerá ao próximo que encontrar? Sobretudo: quando o encontrarei? Aqui não será de certeza.  

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Tenho cinco multas por excesso de velocidade. Isto é revoltante, tanto mais que não sei se poderei ignorá-las, como fazíamos dantes quando éramos flashados em França. Tento pensar que em contrapartida o Estado francês me tratou (enfim, a ver) de borla e as multas são uma modesta contribuição para o tratamento.

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Preciso de navegar, mas enquanto isto não estiver a cem por cento nem pensar. Se bem tenha boas recordações do hospital em Bequia. Também era de borla ou quase: o pagamento fazia-se indo à farmácia comprar remédios para lhe oferecer. "A senhora da farmácia sabe aquilo de que precisamos". Aqui pelo menos o hospital está bem equipado. Só não percebo a origem destas dores, mas isso fica para depois.

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Ficou decidido que a largada para Lisboa vai ser de St. Martin. Vou voltar a ver o meu querido goonies. Tenho de reservar o lugar, aquilo vai estar cheio. Na pior das hipóteses fico na laguna, do lado holandês. Ou em Port Royal... O J. ainda estará vivo? Aquela brasileira de sonho ainda trabalhará no goonies? (Pergunta retórica, claro. Sei que não: há muito tempo que não a vejo nas fotografias da página deles do FB.)

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Preciso de mar.

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Não consigo extirpar o chip "Portugal" e continuo inquieto com o resultado das eleições. É uma estupidez, claro, porque pessoalmente não vai mudar grande coisa. É mesmo só vontade de ver aquela porra daquele país sair da cepa torta - coisa que também sei que não vai acontecer tão cedo, qualquer que seja o resultado. Chama-se a isto amor desinteressado e talvez seja uma boa forma de patriotismo.

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