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Nela apercebe-se de que ficou com o livro e decide ver se encontra o inábil ladrão de livros.
Não teria a mais pequena hipótese de o encontrar se, a pensar nas necessidades da narrativa, o leitor não tivesse deixado cair um pacote com cartões de visita. Chama-se Jaime Queredo e mora a caminho de Setúbal. A personagem principal regozija-se. Gosta de Setúbal e assim pode convidar a livreira para uma caldeirada na tasca da Tia Rosa, que bem boas as faz. O autor lembra-se de que ainda não deu um nome à personagem mas agora não lhe apetece pensar nisso. O importante é reencontrar a tasca e ter a certeza de que está aberta.
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Resumo do segundo capítulo:
A tia Rosa está aberta. Jaime Queredo, leitor inábil sabe aonde fica o restaurante e aceita - hesitantemente, de passagem seja dito - encontrar Nela e receber o livro que tão duramente pagou. Ou seja: neste momento estão na já mencionada tasca o leitor, Nela, a personagem principal e o autor. Nela está furiosa. Entrega o livro ao homem e diz-lhe:
- Tome lá o livro e desapareça da minha vista. E veja lá se aprende a roubar livros, seu traste. - Isto para o tal Jaime. Para o autor:
- Por que raio de carga de água me fizeste esperar tanto tempo para te encontrar? - Para a personagem principal:
- Desapareça você também. Tenho de ter uma conversa muito séria com este homem.
- Desculpe, minha senhora. Não posso desaparecer assim. Sou a personagem principal deste livro.
- Ó homem, ponha-se daqui para fora e já.
Ficamos assim a saber que a personagem principal do livro é um homem capaz de enfrentar o mau humor de uma campeã de krav-maga mas conhece os seus limites. Ainda não lhe sabemos o nome e de momento continuamos a história sem isso. O importante agora é o mau humor de Nela. Porque está zangada?
Já aqui a descrevi: parece uma bibliotecária, o que sendo funcionária de uma livraria faz sentido. Quando não está zangada é uma doçura de mulher, passem-me por favor o cliché. É culta, sensual e tem um sentido de humor devastador. Isso, porém, fica para depois. Educa sozinha dois filhos, apesar de partilhar bastantes tarefas com os respectivos pais. Um chama-se Eduardo e é guarda-livros num banco. Do outro não revela pormenores. Diz apenas que é um gajo que está sem estar, um gajo - insiste na palavra gajo - que consegue conciliar a ausência e a presença, como os aviadores e os maquinistas de comboios.
- Ou os marinheiros - arrisca o autor.
- Esses não. Nunca estão.
- Ou os escritores?
- Ainda pior. Estão sem estar. Parecem fantasmas.
- Você hoje está amarga - arrisca o autor. Agora que estão sozinhos, a caldeirada da Tia Rosa chegou e o moscatel foi substituído por uma garrafa de vinho branco a conversa flui um bocadinho para fora das margens.
- Amarga? Eu? Já me provou? Ou melhor: já me provaste? Farta de te tratar por você. - (Até ali a conversa tinha oscilado entre o tu e o você, mas pouco importa.)
- Concordo. Estávamos a falar dos teus dois filhos, não é?
- E tu, tens filhos?
O autor aprenderá à sua custa que falar com Nelita é um duelo e não tem nada daquilo a que Marguerite Yourcenar chamava «construir um muro, em que cada um acrescenta um tijolo».
- Essa fufa genial... É um dos meus escritores favoritos, sabias? Ainda antes do Adriano. Comecei com o Alexis, continuei com a Oeuvre au Noir e só depois cheguei às Memórias. Não a posso ouvir, mas tão pouco posso não a ler.
- Escritores?
- Fizeste-me esperar uma eternidade. Isso não se faz.
- Posso dizer o mesmo, não posso?
- Podes. Deves. - A zanga passou-lhe, efeito sem dúvida do vinho branco. Põe a mão no joelho do autor e diz-lhe:
- Já li livros teus, sabias? - O tom mudou radicalmente. - Já te conheço, mesmo antes de te conhecer.
- Uma coisa é o que eu sou, outra o que escrevo. - O autor está nitidamente numa atitude defensiva. Tenta afastar discretamente a mão de Nela do joelho mas ela agarra-se-lhe.
- Fizeste-me esperar. Agora tenho de decidir se te perdoo ou não.
É do conhecimento geral que se uma mulher diz isto é porque já perdoou.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.