10.2.24

De que ausência?

A questão não está clara. Nada de resto está claro na minha mente, nem as questões nem as por assim dizer certezas. Sei que é dia porque posso ver a ausência de barcos e de mulheres, as únicas coisas que dantes via. Agora não há uma à vista. Se fosse noite talvez as visse, não sei. Imaginadas, claro. Uma mulher bonita. Uma embarcação bem desenhada, de linhas finas, daquelas que se olham e se vê imediatamente a água a escorrer-lhe pelo casco. Sei que estou longe do mar, mas não percebo se num deserto se numa pradaria. Não há árvores? Não. Há ervas e montanhas ao longe. Perdi a noção das cores ou perdi-lhes apenas os nomes? O meu léxico encolheu mortalmente: sem palavras morro. Ocorre-me que posso viver sem barcos e sem um corpo feminino, mas não sem palavras e ignoro se é verdade ou se estou simplesmente a inventar. Nada está claro, nem mesmo as certezas de antanho. Penso: que é feito dos meus amigos? Já tive uma família? Já tive um barco de linhas escorreitas, harmoniosas, daqueles que fazem parar os transeuntes num porto? Não sei.  Não sei sequer o que nunca tive, quanto mais o que tive. Sei que é dia: posso ver as ausências. De noite é difícil distinguir o que se vê do que se imagina. Talvez porque sonhe em três dimensões. O casco de uma embarcação. O corpo de uma mulher, elegante, racée. Um prado delimitado ao longe por montanhas. Estará frio? Será Verão ou Inverno? Em que latitude estou? Se chover terei aonde me abrigar? O meu vocabulário não está assim tão reduzido: lembro-me das estações do ano. Lembro-me do frio, do calor e da chuva. Lembro-me de latitude e longitude. Sempre gostei de longitude porque tem longe em si e porque nunca acaba. As latitudes sim, têm fim. Acabam nos pólos. A pradaria acaba numa cadeia de montanhas cujo nome ignoro. Também ignoro o meu nome mas isso parece não me preocupar. Penso: enquanto tiver palavras estarei vivo. Como? Como surge-me simultaneamente advérbio e verbo. Sobressalto-me. De onde me saem estas palavras? De que ausência?

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