Não me apetece voltar já para bordo, vagueio por aí, deixei passar a última oportunidade que tinha de comprar cebola para fazer qualquer coisa com o choco congelado que tenho a bordo, está tudo fechado, esta cidade à noite morre, fica com dois ou três pontos de luz, como borbulhas brancas numa pele escura.
Encontro um restaurante brasileiro aberto - a abrir, para ser mais exacto, entro ao mesmo tempo que os donos - digo à senhora «Até que enfim, um restaurante aberto» e ela responde-me «já foi ao front de mer?», penso no Abri Côtier e digo «não, não fui ainda». O restaurante é caro para burro, fico-me por uns quibes e uma cerveja, só me sai disto na rifa, os quibes são pequeníssimos mas podres de bons, quando chegar a bordo vou ter de me desenrascar com os chocos, esta merda só serviu para me esfomear ainda mais, vou ter de comprar mais cigarros, merda a cozinheira vem ter comigo. Diz que viveu vinte anos em Portugal, Setúbal e Madeira, há três dias estava em Lisboa, fala-me de bacalhau à Brás polvo à lagareira carne de porco à alentejana e eu digo-lhe gentilmente que não venho à Martinica para comer comida portuguesa e ela passa para as espetadas e para o bolo de caco e enquanto me fala da Madeira eu penso em St. Martin, pergunto-me «Porra, se isto aqui está assim como estará em St. Martin, a quanto estarão os rhum punch no Goonies?»
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Afinal tinha uma metade de cebola a bordo e todos os ingredientes para fazer um colombo menos as batatas mas em troca tenho a Maria João Pires a tocar os Impromptus de Schubert (o plural está grafado assim na capa do disco, não creio que esteja correcto) e o delicioso cheiro do Colombo misturado ao gosto do planteur e a este maldito acto de escrever, chateia-me esta necessidade, parece que estou sempre a precisar de ir à casa de banho - como é que o A. C. lhe chamou? Ímpeto diarístico? Vou fazer arroz. A sacana da mulher que me vendeu as graines à roussir no mercado do Marin encheu-as de sal. É assim que as cidades entram em nós (consideremos isto tudo uma cidade, para simplificar), passo a passo, petit à petit, sal a mais a sal a menos. Acabei por comprar mais três cigarros.
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Volto a pedir: alguém conhece um neurocirurgião capaz de me extirpar o chip Portugal que não sei como se me veio meter nos meandros das circunvalações dos neurónios? Troquem-no pelo que quiserem, mas não me deixem neste desespero, nesta tristeza, neste «parece que está dentro mas não está» (isto é por causa de um post do M. A. B. no Facebook, diz que aos vinte anos pensava que um dia viveria num país decente - a citação não é verbatim - europeu e tudo e afinal continua em Portugal e Portugal continua Portugal). Pensei exactamente a mesma coisa, meu caro e no dia um de Janeiro de 1986 (?) andei pelo Chiado aos gritos a celebrar a adesão de Portugal à união Europeia ou lá como essa merda se chamava na altura e agora olha, é o que temos: PNS de um lado e Ventura do outro. Versão portuguesa do «Entre Scillas e Caribdes».
Vai, Maria João, carrega-me nessas teclas com toda a força da tua alma.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.