17.2.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM - TOM França, 17-02-2024

Posso estar enganado, claro. Estou muitas vezes. Mas o homem tem todo o aspecto de ser «artista» e está acompanhado por duas senhoras que têm todo o aspecto de ser «senhoras que acompanham artistas». Tudo isto entre aspas porque posso estar enganado. 

O restaurante é caro. É o tipo de lugar de que os artistas gostam, sobretudo quando são de esquerda, passe o pleonasmo e aonde nós, mortais meros, vamos quando precisamos de alguém que nos acarinhe e só nos temos a nós próprios para isso.

O que é a qualidade? Ainda não sei. Em contrapartida, sei que preciso dela como um peixe de água e aqui estou, finalmente em França. Hallelujah! Finalement, la vraie France!

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Comprei uma Parker na Feira da Ladra. Deita tinta por tudo quanto é possível deitar tinta. Não sei se por ser Parker se por ser Feira da Ladra. Foi caríssima. A ideia não era comprar uma Parker mas sim comprar a caneta e a esferográfica que o meu Pai me ofereceu e eu perdi em Antigua. Caíram à água, demasiado fundo para mergulhar. Foram juntas com uma máquina fotográfica. Lembro-me como se fosse hoje e dói-me e por isso perdoo a tinta toda que o raio da caneta larga em todo o lado.

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Qual é o antónimo de felicidade? Ansiedade? Tristeza? Não sei. Felicidade sim, sei: é o que sinto quando não estou nem ansioso nem triste. É o que sinto neste restaurante e esqueço que amanhã existe. Talvez seja essa a definição de felicidade. Talvez os budistas tenham razão: felicidade é a ausência de amanhã.

O problema sendo: aonde arrumam eles o passado?

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Felicidade é a ausência de passado e de futuro.

- Uma vida sem passado nem futuro não é vida.
- Quem é que está a falar de vida? Falo de um jantar num restaurante caro de Fort-de-France. Daí até «vida» vai um passo.

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A minha caligrafia está cada vez pior e eu cada vez melhor. Não há uma relação directa entre a caligrafia e a qualidade.

Se este restaurante escrevesse à mão como seria a sua escrita?

Não sei. Sei que estava a precisar de um havre de qualité. Um abrigo de qualidade. Um porto de abrigo. Saio daqui com a camisa cheia de nódoas - culpa de um bocado de pão que me caiu na sopa - a cabeça cheia de bem-estar e a carteira bastante mais vazia, o que só prova que os contrários se equilibram. 

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Num país em que até à mediocridade é cara, como poderia a excelência não o ser?

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.