Podes sempre pegar numa palavra e deambular por ela ou com ela. Escolhe uma ao acaso: tempo, por exemplo. Esta tem a vantagem de te abrir vários sendeiros, o acaso escolheu bem. Podes falar do tempo que faz: uma merda. Nublado, abafado, ou demasiado ventoso ou completamente calmo. Este é um ano de El Niño, não vale a pena esperar grandes milagres. Podes pensar no tempo que te falta viver, mas esse é um tema que te interessa relativamente pouco porque te leva imediatamente à questão "define viver" e tu respondes "ser autónomo, física e mentalmente" e daí passas para corpo, outro grande coleccionador de veredas por onde te podes perder. Pode ser o tempo na música mas tu és amúsico e tão sensível aos tempi musicais como um elefante à beleza intrínseca da física quântica. Como era aquele conto de que tanto gostavas? O jardim dos sendeiros que se bifurcam? A ver. Não sei. Pouco importa. A verdade é que a ausência do livro te provoca uma punhalada que te rasga o corpo de alto a baixo, de um lado ao outro. Corpo, livros, ausência. As veredas bifurcam-se infinitamente. Precisas dos teus livros em estantes perto de ti, precisas de tempo para os ler, reler, folhear, acariciar e precisas de um corpo que te deixe fazer isso tudo. De vez em quando pões um disco a tocar, não muito alto e sem palavras, porque estas te distraem, mesmo as que não percebes. Se for de tarde, levantas-te para ir à cozinha buscar um copo de vinho (deixas propositadamente a garrafa longe de ti para te forçares a levantar-te). De manhã a bebida é café, de que gostas forte, morno, feito numa panela. Os livros - feitos de palavras - são como elas: bifurcam-te, levam-te de um para outro. Voltas às palavras, as tuas: as que levaste contigo e as que te levaram com elas.
Sonhas. A embarcação aonde vives tem uma conversa animada com o mar. O vento calou-se. Ouves o diálogo e tentas compreendê-lo. Lembras-te de algo que escreveste há anos: um barco não faz barulhos. Um barco fala, seja contigo seja com o mar, com o vento, com outros barcos. Esta sendo aquela de que menos gostas, claro. A que segues com mais atenção. Um barco fala com o tempo, também. Com os tempos, todos os tempos: há um ritmo nessas conversas ao qual tu és sensível e cujas mudanças te fazem intervir.
Voltamos ao tempo. Pensas "se eu avanço no tempo como uma embarcação de vela no mar, que me acontece quando o barco pára, amarrado a um pontão? Pára o tempo também?" Conversa fiada. Retórica, se preferires.
De retórica saltas para qualidade. Não percebes a relação. Talvez a ponte seja Santo Agostinho. É. Como o tempo, de resto. Tens - e leste - as Confissões mas não A Cidade de Deus. Precisas de tempo, dos livros e de um corpo que te permita usufruir deles. A ponte foi Pirsig, também. Zen e a Arte da Manutenção das Motocicletas. O jardim das pontes que se bifurcam.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.