Vinha para bordo com uma daquelas vontades de cozinhar contra as quais não se pode lutar. No caminho para Fort-de-France lera um texto pequeno, daqueles que nos abalam. Falava de paisagens, passeios e de «reminiscências de nostalgias não vividas», uma sequência de palavras que poderia ter sido escrita para mim. Não foi, claro, mas a nostalgia que me tem acompanhado os dias encontrou ali um eco, uma reminiscência. Queria um jantar como um longo e lento passeio.
Chegado, pus uma cebola a refogar em manteiga, reli o texto, pus o Wazimbo - para mim o melhor músico moçambicano, ele e o Jimmy Dludlu, este num registo diferente - servi-me um ti'punch blanc (não os há de outra cor, de qualquer forma, excepto para turistas e néscios), reli o texto, cortei tomate em cubos pequenos, piquei a salsa, cortei metade da beringela em rodelas e pu-la a dégorger (? - Se alguém me ajudar a traduzir isto agradeço, a tradução do google é ridícula). o cheiro das cebolas a refogar em lume muito muito fraco enchia-me o barco, a música, o texto. Quando as cebolas estavam mais do que translúcidas e menos do que castanhas juntei-lhes o tomate e a salsa. Acrescentei as especiarias, mexi tudo muito bem e o gás acabou.
Mudar a garrafa é um projecto que exige tempo e que será melhor fazer à luz do dia (passo os pormenores). Da minha vontade inicial - escrever enquanto o jantar cozia, lentamente - ficou a reminiscência de um molho que será comido amanhã e a ideia de que sim, os lugares dão-se-nos, com generosidade e sem pedir nada em troca, enchem-nos de reminiscências de vidas que um dia teremos, de tudo o que um dia seremos. Há lugares que não são só lugares - são projecções de nós, são aquilo que nós seríamos se fôssemos uma paisagem. E há passeios assim, também, passeios nesses lugares que deixam de ser lugares e se transformam em nós, como se ao olhar para a paisagem estivéssemos a olhar para dentro.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.