Isto está simultaneamente de maré baixa e de mau tempo e eu faço o que sempre faço nessas circunstâncias: cozinho devagar e oiço Leonard Cohen. Devagar não é uma imagem: refogar cebola, cenoura, pimento, carne picada e bacon separadamente, como se fosse uma ratatouille, é coisa que só se pode fazer de mau tempo e em terra. Depois juntei tudo numa panela com o que sobrava de uma late de tomate, acrescentei água e um copo de vinho tinto, deixei cozer um par de meias-horas, troquei a Chavela Vargas pelo Leonard, pus algum rum no copo que antes contivera vinho e pronto, a memória cavalga de novo por esses tempos fora, à rédea solta e leva-me a uma senhora que gostava tanto como eu do Cohen e que deixei fugir por causa da hubris, esse sinónimo de estupidez tantas vezes ignorado.
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A perspectiva de passar aqui mais uma semana sem nada que fazer abanou-me até às entranhas e pus-me à procura de trabalho para horas, dias, semana, o que vier. Dei com o nariz nas portas todas, claro: fim de época e uma semana?
Menos uma. Não tenho um sim, mas tenho pelo menos um talvez. Amanhã saberei. Vou também trabalhar um bocadinho mais no S. D., apesar de não ser grande adepto da prática. Tento desculpar-me dizendo que o armador merece - o que é verdade - e que de qualquer foma este Verão estarei em Maiorca com o «meu» P. e que de qualquer outra forma tudo é melhor do que não fazer nada, sobretudo agora que estou a noventa e nove por cento da capacidade de trabalho e o um por cento que resta é o da pieguice, que tem sempre um lugar à mesa. De maneira assim é: o jantar recebeu a aprovação do tripulante e eu a de Leonard Cohen, o rum HSE de todos os envolvidos (menos o rapaz, que não bebe rum), amanhã vai chover - os aguaceiros precursores começaram hoje - se bem seja possível que as previsões se enganem e cá estou, à espera de peças.
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Ninguém imagina o que é esperar por peças. Uma vez no Panamá precisava de uma junta de cabeças para um motor (não me lembro da marca) e recebi por três vezes a junta errada. A empresa que mas enviava era a única em praticamente todos os Estados Unidos que as tinham e sabiam-no, de maneira recusavam absolutamente assumir as consequências do erro. Diziam-me, quando eu reclamava «compra-as noutra loja». Acabei por ter de pedir a um mecânico americano e amigo para as ir buscar em pessoa e vir ao Panamá montá-las. O transporte custava duas ou três vezes o que custavam as juntas e de qualquer forma não havia no Panamá quem mas conseguisse montar, de maneira acabei por pagar digamos dois ou três mil uma peça que custava cem, talvez quinhentos com a montagem. Esperar por peças é o Inferno do navegante, assim mesmo com maiúscula não vá o diabo pensar que estou a fazer pouco dele.
Esperar por peças deve ser a situação que mais nos confronta com a nossa incapacidade total, com a nossa falta de controlo sobre o que nos rodeia, com a nossa abissal fragilidade. Quando estou numa tempestade ou numa situação difícil sei o que tenho de fazer e faço-o. Aqui não há nada, rigorosamente nada que se possa fazer para acelerar o processo. Estamos na mão de uma longa cadeia de pessoas, cada uma delas pode enganar-se e nenhuma vai assumir as consequências do erro. Salvo raríssimas excepções, mas com essas é sensato não se contar. De maneira cá estou, à espera de peças enquanto cozinho, oiço Leonard Cohen, penso na hubris - os contrários atraem-se -, na miúda, que era linda como sete demónios juntos e bebo o fundo de uma garrafa de rum. Não tarda deito-me. «Never mind. We are ugly but we have the music.»
«Lover, lover, lover come back to me.»
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Trata-se apenas de não ceder, como sempre. «Never give an inch.» Não ceder. Ir com a corrente mas controlar a rota. Não encalhar nem ir pela cascata abaixo. Ir dormir. Pode ser que amanhã tenha um gancho qualquer à espera. De qualquer forma não há mais rum e não vou sair.
A sério?
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Em minha defesa: fui deitar-me. Mas a posição horizontal era-me insuportável. Tentei e mais vale perder do que não tentar. Hoje é sexta-feira, dia de música ao vivo na Paillote Cayali e aqui desafiei a minha seriedade, desafio cobarde porque ela já tinha perdido.
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Quem ganhou fui eu. O grupo hoje é bastante bom, a rapariga atendeu-me rapidamente e trouxe-me a cerveja e o gelado com igual celeridade, não está a chover e...
Só chove dentro de mim?
"Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
...
Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil do que o meu pranto?"
O poema é de Fernando Pessoa, claro. A chuva a sério dentro de mim começou pouco depois de o ter transcrito, quando ainda era só uma emoção, mas disso não quero falar agora. Aquela megera consegue dar cabo do mais pacífico dos momentos.
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