12.4.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 11-04-2024

Ontem dizia que tinha sorte a rodos; hoje a malvada abandonou-me e fiquei a saber que vou ter de passar pelo menos mais uma semana aqui, talvez mesmo semana e meia. Não é por acaso que sorte é um substantivo feminino: é substantivo e é volátil. Não é que esteja farto do Marin, que estou. É mais que estava a sonhar com os dois dias de mar que antecipava e agora vão ter de esperar, esses braços, abertos como os do Cristo Redentor no Rio de Janeiro. Falo nesse e não noutro muito parecido porque a sorte redimiu-se: começou com um apéro no B., depois vim para bordo e cozinhei uma espécie de empadão de batata-doce que ficou aceitável (até eu gostei... O tripulante delirou) e agora oiço as Quatro Estações e tremo com o Outono, como sempre. Esta peça sofre injustamente da sua popularidade. É como dizer que se gosta do Obladi Oblada dos Beatles, salvas as devidas proporções. 

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Ficar aqui mais dez dias (preparo-me para o pior) tem uma vantagem: umas famílias etíopes que vivem na Martinica e se preocupam com o tripulante querem conhecer-me. Como já por várias vezes mencionei ao rapaz que sou um fâ da comida do seu país, hoje prometeu-me que em breve a terei no prato. Não chega para me apagar a frustração, mas que a atenua atenua. Uma injera e wat na Martinica? Se isto não é cosmopolitismo não sei o que é.

É sorte, estúpido.

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Entretanto continuo a perguntar-me o que devo fazer com a quantidade de tralha inútil que levo a bordo do S. D. O que não posso fazer é fácil: deixar tudo aqui ao lado de um caixote do lixo. A pergunta «Mas porque é que isso te preocupa tanto?» tem uma resposta fácil e uma complicada. A fácil é «Uma embarcação de vela não é um cargueiro nem, muito menos, um armazém.» A complicada passa por noções complexas como respeito, uma palavra que só medianamente aprecio - a palavra, não o acto. A navegação - seja à vela seja a motor - acumulou durante estes milhares de anos um saber, um cânone que é preciso respeitar. Não se pode - ou melhor, não se deve - descobrir o mar quando se vai para o mar. É preciso estudá-lo - ou seja, respeitá-lo - antes.

Penso muitas vezes no P. D., que me dizia «Tu não gostas de amadores». Ao que lhe respondia: «Claro que gosto. É graças a eles que tenho trabalho.» 

Bom. Falemos de flores. A minha relação com o mar e com a navegação não é partilhável senão com um número reduzido de pessoas que pensam como eu (se é que se pode chamar pensar a isto. Não pode). Adoro amadores, P. Só não sei como arrumar esta tralha respeitando alguns princípios de base. Por exemplo: segurança, distribuição de pesos, conforto.

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De Vivaldi saltei para Uri Caine, do vinho tinto para o rum. O B. hoje deu-me a provar um rum excepcional, A1710. O nome é esquisito, eu sei. O rum também, mas na boa versão de esquisito. Como quando rima com magnífico, por exemplo. 

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