Do S. D. ao Lagoonies (Goonies para amigos e família) são cerca de dez minutos em bote. Talvez quinze, no máximo. Venho cá durante a happy hour (cada vez gosto menos desta designação. Significa que as outras vinte e três são infelizes?) porque o rhum punch custa dois euros (caso se bebam dois. Um só não sei quanto custa). Não é tão bom quanto o recordo. Ou então a razão é outra: a O. recusava-se a fazer-me o preço da tal hora feliz porque dizia que os meus punch eram mais caros do que a norma. Agora vergo-me às circunstâncias e não peço nada de especial. É o que vem no copo - sem gelo, porque a malta aqui já sabe que sou mais ou menos alérgico à água, seja sob que forma for. Acho espantoso: bastou-me dizer uma vez. Outra razão pela qual frequento o lugar é a luz do fim do dia. Este café tem uma forma de a absorver que é um desafio para qualquer fotógrafo. E depois - no fim, claro - vem a memória. Essa treta de que não se deve voltar a um lugar aonde se foi feliz é isso mesmo: uma treta. Já fui feliz aqui e se hoje não o sou tão pouco sou infeliz e na verdade estou-me nas tintas para a léria da felicidade e ainda mais para a dos seus lugares. Gosto da luz deste café, da comida quando cá como, do serviço, do rhum punch (se bem pudesse ser ligeiramente melhorado, bastaria arrefinfar-lhe com mais spiced rhum mas agora fica como está), gosto da patroa que é uma pequena francesa viva e espigadota e nunca cá está quando eu venho - talvez veja isto como a unhappy hour, quem sabe? - gosto do trajecto para cá e para lá, gosto da ideia de que para o ano posso vir trabalhar para Saint-Martin se nada se interpuser entre aquilo que quero hoje e aquilo que poderei daqui a quatro ou cinco meses, gosto de tudo menos de algumas coisas que não têm nada a ver com o Goonies e não me apetece mencionar agora.
Para dizer a verdade são poucas as coisas que me apetece mencionar agora: a luz, o rhum punch, a beleza simultaneamente simples e elaborada - ou falsamente simples - do sítio. Quando voltar para bordo vou fazer pão. Tenho o barco cheio de farinha. A esta hora devia estar quase a chegar a Ponta Delgada e ainda aqui estou. Podia ser pior, eu sei. Podia estar no Marin, por exemplo, para onde irei muito em breve. Ou na Baixa da Banheira. Ou noutro lugar qualquer desses que não conheço. A geografia da memória reserva surpresas a quem nela se aventura. Assim, olha: vai fazer pão, pá. Amanhã não precisarás de sair de bordo para o comeres ao pequeno-almoço. Esquece a memória: é esse o destino dela, de qualquer forma, não é? É. Um dia não passará da palavra, vazia para ti e cheia para os outros. Uma espécie de vasos comunicantes. Esvazia-se para uns, enche-se para outros. Não são é os mesmos. Pensa no pão, daqui a duas ou três horas, quente a sair do forno, manteiga da Bretanha por cima, uma rodela de chouriço.
Troca-se: trabalho «normal» por pão com chouriço, rhum punch no Goonies, passeios de bote na laguna de Saint-Martin, melancolia flutuante e algumas dúvidas sobre o futuro.
Não acreditem na troca. Não há trabalho «normal» que valha isto tudo.
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A happy hour acaba quando tenho de voltar para bordo por causa do fim da luz. Atravessar esta laguna à noite é uma seca. E ainda há quem não acredite em coincidências.
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ADENDA
O pão ficou bom, apesar de ter sido feito um tanto ou quanto atabalhoadamente. Fui ao supermercado comprar cerveja e no caminho decidi que isto hoje vence vinho tinto. Resultado: um Saumur a seis euros que vale isso, nem mais nem menos. Não é exactamente uma pomada, mas não fui enganado. O Saumur tem a vantagem de se poder beber fresco sem perder muita qualidade. (Da pouca que tem, quero dizer.) A coisa acabou por resultar: o cheiro do pão, o vinho tinto (não bebia há mais de um mês), Officium do Garbarek a tocar, temperatura agradável - vim jantar para o poço, lá dentro estava insuportável, com o calor do forno - e o sono, que gentilmente se anuncia.
Gosto de fazer pão e devia fazê-lo mais vezes.
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O gajo da lancha que vai e vem a St.-Bart e fica atracado perto de mim chegou há bocado e está a lavar o bote, apesar de ser noite cerrada. Infelizmente esqueceu-se das luzes de navegação acesas - merda que, diga-se de passagem, acontece a qualquer um.
Gostava de ser skipper de uma lancha a motor, mas maior. Como a Gulf Porsche que está ali ao fundo. Sessenta pés, pelo menos. Semi-rígido. Coisa para dois mil por dia mais gasóleo e comida. Mais dinheiro, mais velocidade e menos trabalho. Parece-me uma boa combinação, por pouco que ligue à velocidade.
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O pão devia ter levado mais sal. Está demasiado OMS para o meu gosto. (Com a manteiga salgada não se nota.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.