25.5.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 24-05-2024

De novo no Marin, a dar início à última parte desta longa viagem - começou a catorze de Dezembro e terminar-se-á no fim deste mês de Maio (se Deus quiser e puder). Que viagem!

Mas ainda é cedo para falar dela. Ainda não acabou. Está quase, mas quase é uma palavra que engana muito, como todos sabem.

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Por ordem cronológica inversa: 

Tenho um vizinho inglês, ex-skipper profissional. Há pouco ofereceu-me uma cerveja e disse-me: «Pára! Já fizeste que chega por hoje.» Como qualquer pessoa - suponho - gosto de ver o meu trabalho reconhecido. É paradoxal, porque de maneira geral a opinião dos outros acerca de mim interessa-me pouco. Porém, uma coisa sou eu e outra o meu trabalho, coisa na qual ponho brio e tento fazer o melhor que sei e posso. Há certamente melhores do que eu, mas também os há piores e fico contente quando vejo um colega reconhecer o que faço - e para mais um inglês, povo que regra geral sabe do que se trata quando se fala de ser um skipper profissional.

É uma das coisas que me magoa no povo português - somos avessos a reconhecer a qualidade do trabalho alheio.  Não sou o único a dizê-lo - basta perguntar aos milhares de jovens que todos os anos abandonam o país (tal como eu fiz, de resto. Podres de razões). Tenho uma leitora regular, uma das melhores artistas portuguesas, na minha opinião, que diz o mesmo. Não é vaidade - e se for paciência. É vaidade boa. "Nem só de caviar vive o homem."

Antes disso:
Ontem fui mandado parar pela Alfândega francesa, num local particularmente estúpido (chama-se Passe du Fou, é a passagem entre a ponta do Diamant e o rochedo do mesmo nome). Vieram quatro homens e viraram-me o barco do avesso - bastante incompleta e incompetentemente, é preciso dizê-lo. Apanharam uma concha de tartaruga que a S. C. me tinha pedido para levar para Lisboa e mandaram-me ir fundear à Anse Caritan. Dizem que é de uma espécie protegida. Demorei duas horas a chegar, o S. D. não passava dos três nós. Não me multaram por causa da concha, mas sim por não ter feito a clearance à saída de St. Martin. Resultado: uma multa de cem euros que a S. simpaticamente pagou, uma eternidade a andar à procura de um ATM para lhes pagar - tinha de ser em dinheiro, não têm cartões nem aceitam transferências nem nada. Fundeámos em Caritan e quando chegou o momento de pagar levaram-me a Sainte-Anne, que é mesmo ao lado, levantar dinheiro. A única caixa da aldeia está avariada «há seis meses», informa-me muito correctamente um senhor. Os três homens que estavam no semi-rígido comigo pediram informações ao chefe, que nos mandou para o Marin. Por sorte ainda tinha os cem euros na conta. A palhaçada acabou já passava das onze, o que para quem acaba de passar dois dias e meio à bolina cerrada e só pensa em duas coisas - uma cerveja e dormir - é demasiado tarde. (O «chefe» foi bastante simpático e ofereceu-me não uma mas duas cervejas, eu não tinha nenhuma a bordo).

Não é a primeira vez que sou vistoriado e compreendo que seja preciso. Só podiam era ter encontrado outra vítima.

Antes disso: 
Dois dias e meio extenuantes. Ou melhor: um dia e meio extenuante e um dia (mais coisa menos coisa) relativamente calmo. Os meus movimentos a bordo perderam fluidez, mas no resto continuo válido. O cansaço foi físico - as manobras de rizar, desrizar, enrolar a genoa, desenrolar a genoa, folgar a grande, caçar a grande, ajustar o rumo, marear os panos sucediam-se a uma cadência digna dos Tempos Modernos - mas nunca me senti farto, nunca me perguntei que raio de carga de água estou eu a fazer aqui. Pensei imenso, isso sim, naquele meu hábito de dizer a um cliente que não navego à bolina com mais de quinze nós de vento. O tanas, é que não navego. Põe-me um cargueiro, uma festa de aniversário da Ler por Aí ou outra coisa igualmente importante à espera e vais ver se não navego à bolina com mais de quinze nós de vento.

Antes disso:
Saio de St.-Martin após cinco meses e meio de Caraíbas e consegui não ir nem a Grenada, nem às Grenadines nem às BVI. É obra.

Pelo menos fiz uma operação que «o melhor SNS do mundo» ainda está para marcar - foi pedida pelo médico do Centro de Saúde de Cascais ao hospital Egas Moniz a catorze de Setembro do ano passado, com carácter de urgência - e convivi bastante com o meu filho. É muito e não se pode ter tudo. A Passevite está de acordo em adiar a exposição de fotografia, o P. para a semana tem as peças do leme, tenho dois netos lindos. A engrenagem vai encaixando. Excruciantemente devagar, é certo. Mas vai encaixando.

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Um Inverno assim-assim e mesmo assim bastante melhor do que o de tantas outras pessoas. Não vejo grande mérito nisto, tal como não vejo razão de orgulho ou de vergonha em ser português ou falar quatro línguas. É o resultado de um conjunto de coisas que não dependem de mim, no qual a sorte e o azar ocupam partes iguais.

(A paráfrase "azar para o qual trabalhei muito" ocorre-me. Ideia espúria e desprezível, claro.)

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Estou em dia de paráfrases. "Por que palavra começar, por que desordem" transforma-se em "por que palavra terminar, por que desordem". 

Jantei, acabei a garrafa de Mount Gay (estava quase) e sinto os cansaços a lutarem para me abandonar. Assim mesmo no plural: os cansaços novos e os destes dias não se misturam, são como a água de dois rios ou - mais visível ainda - a de um rio a do mar. Ao largo da foz do Yangtse vêem-se a muitas milhas da costa, uma castanha e a outra azul numa espécie de apartheid aquático. Parece que na do Amazonas acontece o mesmo, mas essa nunca a vi. Só sei de ouvir dizer. Diga-se de passagem que por muito que acredite no empirismo não penso que seja a única fonte correcta de informação. Não preciso de provar cicuta para saber que é mortal. (Verdade seja dita: se provasse nunca o saberia, a menos que fosse pouca e morresse devagarinho. Mas deixaria de saber, mais tarde ou mais cedo.)

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O S. D. volta ferido para casa. Mete água e perdeu a tampa do bow thruster, principalmente. O resto são pequenas mazelas de nada. 

É compreensível: a Jeanneau só fabrica barcos há duzentos anos. Ainda não teve tempo de aprender.

Sarcasmo à parte: comprar embarcações de recreio? Só para lá da Bélgica. Isto é: começar nos Países Baixos, como agora querem ser chamados. (Falas holandês? Não. Falo país baixense.)

Nb.: na Alemanha, saltar aquelas aberrações que dão pelo nome de Bavaria e Hanse. E os Dehler de alguns anos. (A França tem algumas excepções equivalentes no outro sentido, mas abstenho-me de as nomear: aparentemente  já nem no Outremer se pode confiar.)

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Creio que já aqui mencionei o piedoso estado da minha electrónica: o telefone a carregar faz pensar naquele haikai do Issa: "caracol / lentamente, lentamente / sobe o Fuji." (1 - Não sei de quem é a tradução. 2 - Cito de memória.) O computador tem as duas portas USB inoperacionais. Felizmente está é toda a electrónica que possuo. Mais houvera mais queixas haveria.

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A navegação em solitário tem uma qualidade que só por si a justifica: não é show off. É show in.

Para lá dos aspectos metafísicos: obriga-nos a planear cada etapa das manobras. Cada passo tem de ser antecipado e planeado. Não há melhores núpcias da improvisação e adaptabilidade com o rigor e a previsão. 

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