11.9.24

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 11-09-2024

Vito é um sem-abrigo que dorme numa na porta de um prédio perto do meu escritório. Vejo-o todos os dias. Começámos por nos cumprimentar gentilmente mas hoje, passados meses da sua instalação ali, falamos quase todos os dias. Vito arranjou um sistema tão engraçado quanto eficaz de pedir: a meio da tarde mostra uma folha A4 plastificada na qual diz «Mais dez euros e atinjo o objectivo diário». Isto tem piada porque num quarteirão de bancos e de empresas as pessoas são sensíveis à palavra «Objectivo». Estou longe de ter a certeza que aquilo seja verdade. Vito nunca me disse qual era o seu objectivo diário. Um dia dei-lhe os dez euros para ver se ele continuava com o papel na mão. Não. Fora-se embora, beber «metade do objectivo», aspas porque cito. «A outra metade poupo.»

Nunca percebi o que fazia ou tinha feito antes de se encontrar na rua. Ele não mo disse e eu não lhe perguntei, reflexo de simetria que tenho desde a jovem idade adulta, já lá vai um bom par de semanas.

Hoje voltei para o trabalho depois de um almoço tardio. Vito tinha o cartaz à vista mas a sua expressão fez-me parar. 
- Que tens? Não estás com boa cara.
- Estou cheio de dores em todo o lado. Se o meu futuro vai ser isto, despeço-o.
- Talvez bastasse trocá-lo por outro mais confortável, não?
- É mais fácil trocar de passado do que de futuro.
- ...
- Estou morto de dores e quase morto de não morrer delas. «On est tous des farceurs. On survit à nos problèmes.»

Nunca o tinha ouvido falar francês, nunca imaginei que conhecesse Cioran. Fui a um Multibanco, levantei o máximo possível (quatrocentos euros, vivemos num país de tesos) e dei-lhos. 
- Enfia-te num sítio qualquer longe da minha vista, pode ser? Confortável, se possível. Se quiseres eu reservo-te um quarto. Obrigado. Se morreres avisa-me antes, por favor. Obrigado. E se precisares de mais para atingires o objectivo da semana avisa-me também. Hoje é tudo o que tenho disponível.

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Hoje tenho uma janela de tempo para largar. Vamos com a maré da tarde. O tempo continua frio e húmido no limte da chuva. Entreguei a bicicleta, bebo o último par de runs (St. James a quatro e meio? Só tenho pena de não poder beber mais), consulto a previsão - não mudou, isto vai ser uma merda até Ouessant - e digo-me que se amar alguém é amar os seus defeitos o princípio pode ser aplicado a tudo, incluindo o trabalho.

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«Pelo menos não gastas», diz-me V. «Não gasto? Não gastaria se não houvesse livrarias e rum nos restaurantes. Havendo umas e outros, a carteira não tem descanso». Vá lá: gasto pipas em livros e frasquinhos em rum. Se fosse ao contrário seria pior.

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