A intenção não era escrever já. Mas paciência, a intenção que se aguente. Estamos a chegar a Vigo. F. governa, já há bastante tempo. Tínhamos combinado uma hora cada um, mas o rapaz não quer deixar a roda, não sei porquê. Talvez para se redimir de ontem, que não fez a ponta de um chavelho. Passou o dia enjoado e aterrorizado, duas coisas que não costumam excitar positivamente a motivação de alguém para fazer seja o que for. Apanhámos badanal, como previsto e durou pouco tempo (idem). Cinco ou seis horas a força oito não é razão para grandes sustos, mas F. já vinha enjoado desde a noite (vínhamos com cinco, seis desde as quatro da manhã e catrapum). De qualquer forma o piloto trabalhava - trabalhou até às seis ou sete da tarde, hora a que resolveu que chega é chega. Falei com Finisterra Traffic e não havia aviso de orcas, de maneira pus rumo directo a Vigo e viemos às meias-horas de leme cada um. Logo a seguir decidi parar em Corcubión, uma pequena e belíssima aldeola de pescadores aonde passámos a noite e aonde comi o melhor polvo da minha vida.
É curioso, isto: cada vez que venho à Galiza como o melhor polvo da minha vida. Mas cada um deles não substitui o anterior. Junta-se ao grupo. Ou seja: tenho uma colecção consequente de melhores polvos da minha vida.
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Vigo:
A Ana V. veio receber-nos ao pontão e andou comigo até agora, ou quase (são dez para a meia-noite, se por acaso alguém perguntar). Estou cansado mas não me apetece ir dormir. Fui deixar a roupa lavada a bordo e voltei a sair. O T. J. está todo molhado, cheio de água e se há coisa que não suporto num bote é que meta água. Neste caso é pior: há águas doce e salgada - esta veio do arraial, mas aquela não faço a mais pequena ideia de de onde vem. Amanhã temos o técnico da Raymarine a bordo. Na verdade as nossas escalas são decididas mais pela electrónica do que pela nossa vontade. Além disso, vamos ter de levantar os paneiros todos, ver se descobrimos de onde vêm as águas. Os quais estão aparafusados, como não podia deixar de ser. Não quero descansar hoje. Nem nunca, de resto (adolescence, quand tu nou tiens... C'est pour la vie). O cansaço de amanhã e o de ontem e hoje estão bastante diluídos.
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Mas a questão não é nada destas coisas, que no fundo não passam da superfície, da espuma, por assim dizer. O cerne da questão é a minha relação com os amadores está a mudar e não sei se para melhor. Cada vez tenho menos paciência para ensinar seja o que for. Cada vez tolero menos os gajos que «querem aprender» (aspas porque cito). Quem vem para o mar devia saber que no mar há vagas, não? E mais: que o terror nunca resolveu coisíssima nenhuma e estar aterrorizado é particularmente inútil - por muito que tenha de reconhecer que ontem o homem não fez falta nenhuma, pelo menos enquanto o piloto funcionou. Estava sol, o que já é bastante bom. Força oito com chuva, frio e céu encoberto seria muito pior.
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Um marinheiro tem um certo conjunto de defeitos. Um escritor também. Por vezes esses conjuntos anulam-se e sai um Slocum. Outras - em minha defesa, a maioria - eles adicionam-se e saio eu. A lotaria genética tem tanto de álgebra como de psicologia, ciência do caos e do acaso, porções de sorte e azar, talento e preguiça (talento tendo aqui o sentido de «aquilo que para cada um nasce»).
Eu nasci para ser marinheiro e escritor, por ordem decrescente das inevitabilidades. O que me leva a olhar para toda a gente como se por um espelho partido: de um lado o que pensam, do outro o que pensam de mim. Esta última imagem perde-se, reflectida em milhares de pequenos cacos do tal espelho e eu não consigo fazer seja o que for com tantos pedaços das opiniões que me tocam.
Há excepções. claro. Pessoas para quem aquilo que me vêem me chega intacto e é impossível de ignorar. Fica para depois. O café Komercio está a fechar e tenho de me despachar. Uma coisa é certa: quem faz parte deste grupo não é gente. São semi-deuses, única característica comum a todos os meus amigos.
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Vigo não tem nem metade do charme arquitectónico da Coruña mas as pessoas são no mínimo igualmente simpáticas. E tem uma vantagem grande: o maldito cabo já está para trás. Agora é sempre a descer, orcas ou não.
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O café Komercio fechou e a perene dúvida reaparece: bom senso ou bom senso? Dormir ou mais um copo?
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.