3.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-12-2024

Devido a um certo número de restrições orçamentais venho de autocarro do aeroporto. Palma cheira a despedida, um cheiro que não lhe fica de todo bem. Não lhe corresponde, por assim dizer. Para compensar, venho à San Jaime beber um Caravajales. O equilíbrio é a fonte da harmonia. O que se poupa de um lado deve gastar-se no outro, sob pena daquilo a que os ingleses chamam imbalance, termo chique para desequilíbrio.

Como vermuteria o San Jaime deixa um bocadinho a desejar - tem pouca escolha - mas como razão para descer do autocarro uma paragem antes tem argumentos sólidos: a música (cançonetas pop inconsequentes), o serviço (miúdas novas, giras, simpáticas, sorridentes e competentes), a localização (a caminho do clube), o conforto e sei lá que mais. Sei que desci uma paragem antes, bebi um Caravajales e um Padrón e a caminho de bordo ainda parei na Cantina porque tinha de esperar pela bicicleta, que está fechada num local e para o abrir é preciso chamar um marinheiro e por conseguinte beber um copo de tinto e brincar com a empregada e pensar «porra, isto está a acabar?» Tudo indica que sim.

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Chego a bordo e começo a arrumar as minhas coisas. É preciso fazer a cama. Os lençóis estão húmidos - tudo está húmido. Tenho coisas demais, eu sei. Paciência. Quem não tem jeito para a frugalidade tem braços, pernas e sacos de supermercado. E um aquecimento no máximo, ver se esta humidade desaparece.

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Reencontro a minha burra. Palma desliza sob mim. Suspeito que a ideia do tapete voador veio de um ciclista.

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O trajecto para jantar foi no mínimo ziguezagueante. Como de costume não sabia aonde ir mas desta vez à indecisão habitual juntava-se outra, a do início deste post. Estou de saída e a questão resume-se rapidamente ao Antiquari e ao Bar Rita - aquele porque foi a minha primeira casa em Palma, este porque foi aonde Palma - ou Mallorca, para os preciosistas - me abriu a porta. De caminho bebo um vinho quente e como um cachorro idem na Rambla, que está linda como sempre. Acabo por escolher o Antiquari, motivado mais pela comezinha necessidade de escrever do que por esotéricas ideias de chegadas e partidas, casas e portas.

Um gajo sabe que está no café de um francês quando diz à empregada «preciso de uma mesa para comer e para escrever» e ela aponta para a sala de trás e diz: «ali está mais tranquilo para escrever.» Ainda oscilo um bocadinho mas acabo efectivamente na sala de trás, porque tenho mais luz do que na da frente.

Esta sala parece um décor de cinema. Não é por acaso que uma das minhas fotografias favoritas foi feita aqui.

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E assim saio de Palma: como entrei. Com espanto e amor, como se cada dia fosse o primeiro e o último.

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Primeira nota importante: o La Rosa não tinha fila à porta e consegui entrar sem esperar. Ainda me lembro de quando se podia entrar ali como noutro sítio qualquer. Bebi um Noilly Prat tinto porque estava a precisar de um vermute seco. O Noilly Part branco é o vermute do dry martini e o tinto é o vermute de quem precisa de um copo de Descartes. Descartes em copo, por assim dizer.

Segunda nota importante: se as clientes do Antiquari abrissem uma agência de matrimónios ter-me-iam como aspirante a todas e cada uma delas. (E se fossem mais velhinhas, coitadas, que assim novas são um imbalance). Para restabelecer o equilíbrio peço mais um copo de vinho, outra vantagem de se frequentar o café de um francês. O vinho é bom. Palma é uma cidade cheia de equilíbrios. Ou melhor: fácil de equlibrar.

Terceira nota importante: Luisinho...

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Contesto vigorosamente o nome Palma de Mallorca. Prefiro-lhe Palma de Mim.

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ADENDA: A caminho de bordo salta-me o Jaume, mais conhecido por Bodega Can Rigo, ao caminho, que Deus me perdoe a repetição da palavra caminho. É inverno, tenho lugar, o Jaume está disponível e dá-me um abraço sorridente, a Picki lembra-se do meu nome, o outro Jaume quase esboça um sorriso. Há algo na reserva deste povo que me atrai, me seduz, me encanta e me faz suportar passar uma hora ao balcão sem trocar uma palavra pela razão simples de que não é preciso.

Sou um homem de palavras e vivo bem sem elas. Nós, os marinheiros, somos tudo e o seu contrário.

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Encontro o V. (e a H., acho que nunca os vi um sem o outro) e lembro-me de que queria fazer uma festa com ele quando o P. ficasse pronto. Nunca ficará e nunca haverá festa. Com um pouco de sorte pedir-lhe-ei para tocar meia hora no bar Rita. É um sax e um flauta extraordinário. Com sorte.

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Já estava a bordo. Cama feita, olhar olhado sobre o desolo de ter tudo (enfm, um largo quase tudo) em sacos de supermercado e a imperiosa necessidade de um taco no 7 Machos arrancou-me a essa doce (ou amarga) contemplação. A mistura é sempre a mesma: Modelo, Mezcal, Pastora. Não sei que ordem dar a isto, de maneira fica assim. Isto para não mencionar as clientes. Se o fizesse, as do Antiquari ficariam zangadas, aposto.

Ou seja: Palma acolhe-me e eu esparramo-me por ela abaixo, goelas e braços abertos, pernas para pedalar e sentidos alerta, antenas no ar que a vida não perdoa a quem não lhe presta atenção. 

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O mezcal do 7 Machos é da marca Banhez, se por acaso. 

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Agora sim, posso ir deitar-me. A escada para a cama tem um monte de degraus e já subi metade deles.

1 comentário:

  1. Aspirante a Marujo20:11

    Excelente leitura. e
    Espaço, tempo, sabor, velocidade, em frases incrivelmente belas.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.