A ideia chegou-me via um post de Desidério Peixoto (nomeio porque é um pseudónimo) no FB. Apetece-me escrever sobre coisas simples, sobre o cacau em pó que comprei na Casa Chinesa do Porto mas as ramificações levam-me para a África do Sul, para bordo do M/T ALTAIR, aonde o Miguel me preparava uma mistura de café e cacau à qual juntava brandy e com isso me curava as ressacas quotidianas; dali passo directamente para hoje, para a elaboração do cacau, que deve ser espesso e levar pouco açúcar, o mínimo possível e lembro-me das discussões teológicas do século XVII para saber se o cacau era um líquido ou um sólido, tema importante porque determinava se podia ser comido nos dias de jejum ou não. Mexo devagarinho o cacau, ao qual juntei um pau de canela, açúcar mascavado e antecipo com prazer o prazer que terei ao bebê-lo, misturado com um bocadinho de leite, bebido devagar como foi cozinhado. Cada vez cozinho mais devagar, só uso lume forte se preciso de selar uma peça de carne rapidamente e depois vai directamente para lume fraco, para tempos longos, deixar que seja o tempo a cozinhar, o tempo e a memória aos quais se juntam os diferentes prazeres, os da espera e os do palato, os antigos e os novos, tudo isto acompanhado pelo piano mágico de Mal Waldron, pelo baixo de Charlie Haden, por música barroca tocada à guitarra, por um vinho quente bebido devagar, como foi feito: devagar. Uma lenta mistura, como lento é este domingo frio e chuvoso, cinzento e constipado, os lenços de papel voam e apercebo-me de que são eles a única coisa rápida do dia. No mar não me constipo, não sei porquê. É tão grande, a quantidade de coisas de que ignoro a razão mas agora dou-me ao luxo de as ignorar devagarinho, é a melhor forma de não saber qualquer coisa. O espaço da ignorância é demasiado grande para ser percorrido a correr, corre-se o risco de nos cansarmos antes de lhe chegar ao fim. O cacau acabou - foi ao pequeno-almoço - o vinho quente está a acabar - é a sobremesa do almoço - e esta mescla não tarda dispersa-se pela tarde de domingo, dedicada ao Desidério e às coisas simples como o cacau da Casa Chinesa, o vinho quente, o Missouri Sky ou, sobretudo, a lenta jouissance da ignorância.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.