27.5.25

Diário de Bordos - No mar, St.-Martin - Horta, 11 a 27-05-2025

O piloto automático em modo vento é provavelmente a melhor invenção dos senhores da electrónica - depois do GPS, claro. Vou a sessenta do aparente e a setenta e picos do real. Não vale a pena tentar apertar mais: o bote vai carregado com gasóleo que chega para meia volta ao mundo e mais outra tralha diversa, pesada e inútil; da grande o terço superior não funciona de todo. Talvez servisse para fazer uma bandeira. Mesmo assim tive de rizar, note-se e num dos squall fui ao segundo rizo. Foram muitos, esta madrugada e esta manhã. Já sabia o estado da vela. O Ernst da Tropical Sail Loft (a publicidade não é paga e é de minha iniciativa. É o melhor veleiro de St.-Martin) já me tinha dito: reparar esta vela é pôr dinheiro bom em cima de dinheiro mau. Mas fazer uma nova implicaria uma espera de três meses, coisa que nem o proprietário nem eu queríamos. De maneira cá venho com o meu pano bandeira, que tanto trabalho nos deu a desmontar e a montar. Do gasóleo também sabia, naturalmente: quatrocentos litros nos tanques e outro tanto em jerrycans. Não sei quem o comprou nem para quê mas dói-me ver o bote a caturrar e a reclamar do peso. Só me espanto é estar a fazer um pouco mais de seis nós de média. O quarenta não é nem de perto nem de longe o melhor modelo da Lagoon - e este muito menos, com quatro casas-de-banho para quatro camarotes - mas que anda, anda.

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Saímos de Marigot há trinta horas. O W. tem estado enjoado mas mesmo assim cozinha bem. O M. está bastante melhor do enjoo inicial e a T. confirma que é a miúda impecável que se via em terra. Não sei se vou conseguir fazer isto em quinze ou dezasseis dias mas pelo menos tudo indica que a viagem vai ser agradável. Se a grande aguentar. 

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130525 

Hoje passámos o trópico de Câncer. Estamos geograficamente fora dos trópicos mas até chegarmos aos ventos de Oeste - ou melhor ainda, à calmaria de uma alta-pressão, é como se ainda lá estivéssemos. Curioso, este desejo de me apanhar sem vento para usar o gasóleo todo que tenho a bordo. Enquanto não vir os jerrycans vazios não descanso.  

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Da mesma forma que numa criança que cresce um dia vemos a cara que terá em grande, hoje vi a minha cara de velho - doze anos depois de me ter visto velho, em Grenada, numa fotografia da minha filha H. É uma das imagens de mim de que mais gosto e hoje ao espelho confirmei: a velhice é um porto depois da tempestade. 

É com prazer que digo adeus ao "touro furioso" (aspas porque cito). Ele que vá pastar para outras paragens. Enfim... digo isto e penso imediatamente que talvez não seja completamente verdade. 

A verdade completa interessa-me pouco. Pelo menos nesta área. Gostaria imenso de saber a verdade toda sobre a dieta das andorinhas no hemisfério sul, por exemplo. Ou sobre a técnica de fabrico de frigideiras no séc. XIII no Quirguistão - assumindo que as tinham. 

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140525 

Vamos a caminho do quarto dia de viagem. Cerca de 25% do tempo que esta primeira etapa vai demorar. Estou ansioso por que o vento caia de vez. Assim como está nem coisa nem sai de cima: tenho de ir a motor mas não posso fazer rumo directo. Quero consumir esta quantidade absurda de gasóleo, ver se aligeiro a burra. 

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150525 

Tinha um squall pelo través de estibordo e fui vestir-me em consequência. Fato Henry Lloyd e botas Dubarry. O squall afastou-se. Toda a gente sabe: a melhor maneira de evitar essas bestas é estar preparado para elas. 

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As marcas servem näo só para transmitir informação sobre nós aos outros mas também a nós próprios, dizia já não sei quem. Por exemplo: cada vez que ponho aquelas botas fico a saber que tenho um irmão porreiro que mas ofereceu. E o fato Henry Lloyd informa-me de que já estive na Holanda num flea market náutico e comprei aquilo novo por metade do preço, já não sei porquê. (Ou seja, ando a transmitir falsa informação aos outros..) Não, não comprei a um cigano e não foi na feira de Carcavelos lá do sítio. Aquilo é legítimo. Só que foi comprado a meio preço. 

Posso não perceber nada de Balenciagas, Tom Fordes et al. mas sobre moda náutica não hesitem em consultar-me (é mentira. Uso Henry Lloyd desde os dezoito anos e só não uso botas Dubarry desde essa altura porque o meu irmão era muito novo. E elas não existiam.)

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O dia acaba e as nuvens apagam-se pouco a pouco. Primeiro as mais baixas, que já estão cinzentas; depois as de cima, por agora cor de laranja intenso. Não tarda serão cinza, elas também. Hoje transfegámos duzentos litros, mais litro menos decilitro, de gasóleo dos jerrycans para os tanques. O MADRIGAL VI agradece. O caturro tornou-se imediatamente mais suave. Ainda estão cento e cinquenta nos paióis de vante. É um exagero (e não estou a contar com os oitenta ou cem que tenho à popa). 

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Ser marinheiro é ser tudo e o contrário de tudo, escrevi um dia (um pouco mais elaborado, verdade seja dita). Saí de quarto às seis da manhã, vim para o camarote para uma pequena sesta e o resto do tempo foi passado "a fazer coisas", a minha maneira habitual de passar o tempo a bordo: inspecção ao tanque de água - quase cheio. Parabéns e obrigado, tripulação; dei-lhes um pequeno curso sobre a meteorologia desta viagem; trabalhei - ou melhor, comecei - o trabalho para a continuação da publicação do DV; mostrei-lhes o programa do Quinn; li pouco mas li; venho de novo para o camarote escrever sobre a dualidade, ambivalência ou dupla personalidade do marinheiro. 

Por um lado, gostaria de conhecer as últimas tropelias do Trump, as chamadas trumpelias, de saber como está a guerra na Ucrânia e quem ganhou as eleições em Portugal, se é que já foram. Por outro, estou contente por não ter o Starlink. Estas "coisas" que faço não me distraem do mar, não me desembarcam, por assim dizer. O que inevitavelmente aconteceria se tivesse net a bordo. 

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160525 

Primeira mudança de hora da viagem. Pouco a pouco, passo a passo, vaga a vaga. 

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Uma das réguas saiu do slide, o que implicou sessão de acrobacia. M. diz-me que faço estas coisas para pretender que não tenho sessenta e sete anos. Não lhe disse que ainda há pouco dias escrevi quanto gosto de ter esta idade. 

Depois, no continuar da conversa, disse-me que as faço por gosto. Aí corrigi-o: não me arrisco inutilmente mas é indesmentível que gosto de ser capaz de fazer face a estas situações. Só que não é por causa da idade. Esta, aliás, leva-me a ser bastante mais cuidadoso agora do que era dantes. 

O que em parte explica porque gosto da minha idade. A diferença entre super-homem e super-parvo, já de si ténue, esfrangalha-se ao longo dos anos. 

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Não consigo dormir, apesar de ter os músculos todos doridos da sessão de espiritismo desta tarde. Pensei em medir a glicemia mas em vez disso comi dois triângulos do Toblerone que está no frigorífico de bombordo. Daqui a hora e meia entro de quarto e antes disso vai mais um, aposto. A verdade é que sem álcool o açúcar cai dramaticamente. Nem com o chocolate e os candies (uma coisa horrível, feita de açúcar em forma de borracha) vai aos níveis habituais. Reduzi os comprimidos para um por dia, ver se dou uma folga aos rins e ao fígado. Imagino o que sofrem, coitados, sem rum nem cerveja. Eu não sofro, mas é verdade que hoje me apeteceu uma cerveja. E um cigarro, que também não há a bordo. 

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170525 

As sessões de espiritismo continuam e os músculos reclamam cada vez mais. Passaram de uma vida em que o exercício mais violento era cortar as unhas dos pés para outra em que são precisos porque sem eles não há vida. Queixam-se, claro. 

Morro de pena deles, coitados.

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Rumo norte, ver se encontro os ventos de oeste. Deve ser a primeira vez na vida que ne meto voluntariamente por um anticiclone dentro e espero que seja última. Já o MADRIGAL VI agradece. Sente-se mais levezinho. Estou farto do motor e o resto da tripulação também. 

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190525 

Encontrei rum Gosling em Philipsburg e vou poder fazer Dark 'n Stormy em casa (se o rum lá chegar, o que é pouco provável). Agora já só preciso de uma boa ginger beer. Ah, a falta que faz o British Bar do antigamente. 

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Vento SW 20 nós. Vou em rumo directo para os Açores, demasiado devagar para o vento (seis e meio, sete) mas a dar graças a Deus e ao Ernst por a grande se ter aguentado até aqui. E mais darei se chegar inteira a Motril. 

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"Nada Entre mim e a Lua." Não me lembro do primeiro verso do haïku, que não me sai da cabeça quando navego, mesmo quando estou de quarto em baixo, como agora, deitado a ouvir a conversa do MADRIGAL VI com o mar. Não trago o hélice engatado - são de pás fixas e fazem-me perder meio nó cada um - de maneira a reunião vai animada. 

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210525 

O cenário destes últimos dois dias é o habitual:cinzento, mar cinzento às listas brancas, chuva, frio, baldes de água atrás de baldes de água. Rizei, desrizei, voltei a rizar e agora, com um rizo na grande e quatro voltas na genoa, estamos em ordem. É pouco provável que isto suba outra vez. 

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Quando as embarcações de vela eram embarcações e não residências secundárias tinham um compartimento para se pendurar as roupas de mar molhadas. Hoje não têm e é preciso pô-las "a secar" (aspas porque é irónico) na casa de banho. A qual já de si é pequena porque cada camarote tem uma. Os senhores não podem partilhar um duche e uma retrete, coitados. 

O pior do badanal já se foi. Agora vamos com força seis / sete ligeiramente para ré do través. Um largo folgado. É o largo e sou eu, que vejo a burrica a andar. Tenho gasóleo para dia e meio (e mais uns pós de que não se fala porque é como se não existissem) e quanto mais perto puder chegar da Horta sem usar o motor melhor. 

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220525 

Terceiro dia de badanal. Está tudo e estamos todos encharcados. A maior parte das escotilhas mete água. O pior não é tanto o cansaço - com três pessoas a correr quartos descansamos o suficiente. É a roupa toda molhada, o frio, o estar farto. Vamos com dois rizos na grande e menos de metade da genoa. A questão é: isto ou falta de vento? Até há poucos anos teria respondido sem hesitar. Agora não sei. Hesito, imagino-me parado mas com sol, talvez a tomar banho no mar... E a perguntar-me "que mal fiz eu a Deus?" Assim, pelo menos andamos. Estamos a menos de setecentas milhas da Horta, cinco dias. E pergunto-me: "Vão ser todos assim, esses cinco dias? Que mal fiz eu, etc.?" 

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Se não fosse o cor de laranja intenso da bóia sentir-me-ia numa fotografia a preto e branco. Ainda no banho da revelação.

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Há algum tempo que não atravessava num barco tão pequeno: quarenta pés. Os ingleses têm razão: um pé de barco por ano de idade. 

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Pouco a pouco, nó a nó o vento vai caindo. Em breve, destes dias só ficarão as roupas molhadas e um ou outro episódio mais marcante para a miudagem. Para mim, isto ficará registado como o badanal em que descobri que o meu Henry Lloyd já não é impermeável. Não tem mais de oito anos, bolas! Vou escrever à marca a reclamar. A queixar-me. A manifestar o meu désarroi.

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Faltam seiscentas milhas. Em condições normais seriam quatro dias. Estou mais tentado a acreditar que serão cinco. E eu com o armário cheio de rum, coitado. Como é aquele velho dito "a espera aumenta o prazer?" "A antevisão de um copo de rum após quinze ou dezasseis dias de mar provoca uma onda de prazer que rebentará com estrondo quando deixar de ser antevisão e passar a visão." Sucintamente é isto. 

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Pode fazer-se tudo no mar menos mentir. O mar não engole patranhas. 

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Então é assim. Dois pontos. O vento continua de sul mas agora nuns mais agradáveis vinte nós. O MADRIGAL VI avança ligeiro a um largo, livre das centenas de litros de gasóleo dos jerrycans e com os tanques de água e de combustível a meio. A noite esta fresca mas não fria e lá para terça feira saberei, finalmente, quem ganhou as eleições e lerei notícias das trumpelias destes dias. 

Abençoado oceano! 

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230525 

Acabo de fazer a primeira volta de revisões do ano dois mil e doze e comecei o dois mil e treze. Ainda bem que escrevo um diário. Não há memória humana que chegue para tanta coisa. 

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Depois de três dias a andar o vento tropeçou e caiu. Agora arrasto-me a cinco nós. Vou ter de rever o ETA, está visto. Tudo se paga nesta vida? Bolas, o frio e ter tudo encharcado parece-me um preço mais do que suficiente. 

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Gritos da T. Viu uma baleia. Era uma baleia de bossa, a mais de cem metros do barco (pelo menos quando eu a vi. Parece que passou mais perto). Pareceu-me que tinha uma cria atrás mas não tenho a certeza. Depois da cena de quando ia para Lisboa de Ponta Delgada no AQUARELLE, baleias a mais de cinco metros não me impressionam. 

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Pescámos um yellow fin. Grande festa, fotografias, filmes, Gopro e o diabo a quatro. Eu, homem simples como sou, só pensava nas calças que já estavam quase secas e agora estão todas molhadas outra vez. 

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Último duche até à Horta. Devia ter sido amanhã mas não me apetece nada nem voltar a pôr estas calças encharcadas nem pôr umas lavadas sem me lavar eu primeiro. Maldita dessalinizadora! E maldito o meu perfeccionismo. Se tivesse feito o que o gajo antes de mim fez provavelmente teria água para um duche todos os dias. 

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A pergunta "Quem é que ganhou as eleições?" ganha foros de obsessão. Amanhã saberei. Não gosto de obsessões e muito menos quando são parvas. 

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T. tem uma teoria bonita sobre o avistamento da baleia. Diz que é o encontro do mundo submarino com o nosso. Um bocadinho mais elaborado. Gosto da ideia e amanhã vou pedir-lhe que ma conte de novo. 

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O vento reforçou um bocadinho e estamos de novo entre os cinco e os seis nós. Não é muito mas é melhor do que nada. Este code zero faz milagres.

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240525 

Estou a editar o DV para a próxima publicação, cujo título por enquanto é Não sei. Estou na parte em que a T. me deixou. Aquilo é de fazer chorar as pedras da calçada mas de uma coisa posso orgulhar-me: consegui evitar a pieguice. Alguns posts até são bons. 

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A motor, outra vez. Mil e quatrocentas rotações e só no motor de bombordo, para equalizar os tanques. Penso que chegaremos lá para segunda à noite. 

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Vem, tempo, vem. Enche-me de mar os olhos, de sol a pele, queima-me devagar e à estrada que ficou para trás. É um caminho sinuoso mas é o que me trouxe aqui, a ti. Que nada sobre dele senão estas meias dúzias de palavras. 

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250525 

Penúltima noite no mar. Não estou seguro de que a de amanhã conte: vai ser a da chegada. 

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Resisti à tentação de perguntar o resultado das eleições. Não foi difícil. Na verdade não passava de uma litote, da ponta do icebergue. São tantas as coisas da terra que me esperam... Mais do que aquelas por que eu espero e de que preciso. Tenho uma vida em terra e as eleições são uma das piores partes dela. 

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O meu olho direito não vê a ponta de um chavelho. Vá lá que lhe vê a base. Infelizmente não chega.

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Tenho visto caravelas portuguesas enormes. Deve ser do aquecimento global. Ou do arrefecimento local. Ou da situação na faixa de Gaza. Ou assim. Alguém devia levar isto à atenção do Guterres, ver se ele vem experimentar-lhes a toxicidade, convidar a Greta grotesca para a Assembleia Geral da ONU e declarar as caravelas portuguesas uma espécie em risco. 

Por falar em Guterres: é possível que a sua irrelevância seja melhor aferida se se comparar o salário do homem ao do Cristiano Ronaldo, por exemplo. Talvez nem seja preciso ir tão longe: qualquer jogador médio de futebol ganha mais do que aquela aventesma. 

Verdade seja dita: o mesmo se aplica aos outros secretários-gerais da máquina de untar porcos. 

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Faltam cinquenta milhas. "Metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa." 

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É impressão minha ou quando os países africanos ainda eram colónias havia menos gente a querer vir para a Europa? 

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270525 

Chego, tenho acesso à net e apercebo-me de que afinal o mundo não mudou enquanto estive no mar. 

E esta, hein?

1 comentário:

  1. "Tenho visto caravelas portuguesas enormes." Nunca tinha lido um "diário de bordo" e se calhar, por isso, o que vi foram caravelas portuguesas. Obrigada.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.