28.5.25

Diário de Bordos - Horta, Faial, Açores, 28-05-2025

Por uma razão de que eu não compreendo as razões, a realidade nunca está de acordo com os meus planos. Por um outro conjunto de razões, este mais facilmente compreensível, os planos que a realidade faz para substituir os meus acabam sempre por prevalecer. 

O meu plano era:

- Chegar à Horta;
- Dormir;
- Acordar e
- Lavar o bote;
- Fazer a entrada;
- Sentar-me no Peter a tratar das poucas centenas de assuntos que precisam da minha atenção. 

Escusado será dizer que as coisas não se passaram assim. São vinte para as cinco e só agora os miúdos começaram a baldear o convés. Chegámos há pouco do almoço. Estamos de braço dado com outro cata que vai largar amanhã e a ideia é trocarmos agora: vou eu para dentro e fica ele por fora,  pronto a largar. Resultado: sesta comprometida e um dia de atraso sobre o meu plano. O da realidade, esse, cumpre-se ao milímetro. Ao segundo: as coisas acontecem quando têm de acontecer, não antes nem depois.

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Pensava ficar quatro ou cinco dias aqui. Já sei que vão ser mais. Não sei é quantos mais.

Monótono, o mar? Monótona é a terra, por muito adorável que seja.

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Chove e eu bebo rum (merdoso, mas isso é outra história). É uma combinação frequente na minha vida. No Peter disseram-me que não podia sentar-me na única mesa livre porque «há uma lista de espera». Lista de espera em minha casa? Vim para o bar do clube, que me parece uma boa residência de férias.

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O shore power de bordo é de trinta e dois amperes; o da marina de dezasseis. Preciso de um adaptador. Encomendo-o, dizem-me que estrá pronto às três da tarde. São quatro e meia, não está pronto e não sabem quando estará. Depende do técnico. Há quem não perceba a minha vida. Eu percebo: basta saber lidar com factores que não controlamos e beber rum enquanto chove.

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Venho a Porto Pim, lugar de peregrinação obrigatório cada vez que venho à Horta. Bebo moscatel numa tasca feia. Porto Pim merecia melhor do que isto? Não sei. Sinto-me em modo Cônsul e a fealdade do lugar e da clientela não me incomoda nada. Vou jantar lapas ao Peter, está decidido. Agora limito-me a ouvir Hildegarde e a pensar nas incomensuráveis profundidades das alturas. Ou ao contrário, nas incomensuráveis alturas das profundidades. Ou no poder sagrado, divino, da memória, que nem uma tasca feia consegue magoar.

De que eu não sou bipolar tenho a certeza; já o mesmo não digo da minha vida. Ou digo: não é bipolar, é multipolar. Tem mais polos do que a estrela de David. (Hildegarde aponta para eles todos.) 

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O Peter tem lista de espera. Quatro mesas antes de mim. Atenho-me à decisão inicial: lapas e vinho branco. Continuo a ouvir Hildegarde, que se mistura deliciosa e contraditoriamente com o barulho ambiente. É como dormir numa cama quente  uma noite de tempestade.

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