10.6.25

Diário de Bordos - No mar, Horta, Açores - Sta. Eulalia, Ibiza, 04 a 07-06-2025

Quase a chegar a Lagos para bancas e saímos ligo a seguir para Gibraltar. Aqui ficam, brutes de coffrage, as notas da viagem.

040625

O N. F., amigo recente mas que muito estimo e admiro, diz que no mar sou um e em terra outro. Às segundas, quartas e sextas tendo a concordar com ele; às terças, quintas e sábados penso que não, que sou o mesmo e limito-me a ter uma grande capacidade de adaptação. Aos domingos penso como dizia aquele meu colega da banda desenhada: sou o que sou e é tudo o que sou.


Ao fim de cinco dias na Horta estava com falta de mar, uma espécie de asma que me dá às vezes e não depende, de todo, da quantidade de dias que estive em terra ou no mar nem das respectivas gaudas ou dores.


Agora, no fim do segundo dia, confirmo a asma e o remédio, apesar da porcaria do tempo, frio e encoberto. Fizemos um monte de horas a motor mas há pouco enviei o code zero, desliguei as máquinas e venho deitar-me ao som da costumeira conversa do MADRIGAL VI com o elemento em que navega. O hélice diz-me a velocidade com uma aproximação aceitável, as vagas estão mais alinhadas, o almoço foi umas febras esplêndidas marinadas meia hora em massa de pimentão dos Açores (intercala-se aqui um hallelujah pelo desembarque do W. mas isso são contas de outro rosário), o bote faz seis nós - pouco para o vento que está e muito se se incluir o estado da grande, que tem basicamente a forma e a eficácia de um saco de batatas. (Melhorou um bocadinho, de passagem se diga, como o aconchego que lhe dei na escala.) De que é que estava a falar? Ah, sim, de paz, harmonia, alegria, bem-estar... Essas coisas quando estão juntas formam una espécie de maionese a que se dá um nome que ando para aqui às voltas para evitar dizer, não vá ao diabo dar vontade de me fazer uma partida.


Acresce que tudo parece indicar que amanhã teremos sol.


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Escrevi à Henri Lloyd a queixar-me das calças que nem "dez anos" têm. Na verdade nem oito. Comecei o e-mail com a fórmula habitual na casa: "Dear Sirs, I am appalled and distressed..." A resposta veio rápida, gentil e em linguagem normal, não em língua de madeira.  Tal como teria sido em Portugal, de resto, toda a gente sabe. Dizem-me que as calças chegaram ao fim da sua vida útil, que os materiais modernos não duram como os de antigamente e oferecem-me um voucher de dez por cento na compra do próximo equipamento. 


Não tenho a certeza de querer gastar noventa por cento de uma pipa de massa numa roupa que nem dez anos vai durar. 


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A merda da dor nas costas não me larga.


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Nunca falei com o dr. Segismundo ou com o Dr. Carlos sobre os dos outros mas os meus sonhos tem uma qualidade gráfca invejável.


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050625


Arrastamo-nos a cinco nós, cinco e meio mas pelo menos  estamos mesmo em cima do rumo. É portanto possível que chegue de dia ao waypoint Trafalgar, ao largo do cabo homónimo,que situei no meio das pedras do baixio que por ali está. Prefiro pedras a orcas, apesar do monte de petardos que tenho a bordo. Ainda não os experimentei e não sei o que valem. Já as pedras não se mexem e não chateiam se eu não me mandar para cima delas.


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Em dois mil e doze todos os domingos fazia uma ligação à crónica do A. G. no Diário de Notícias. Vi tantas tantas que lhe pedi para escrever o prefácio. Disse que sim. Não é só o mar que me enche de alegrias.


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Isto porque continua a revisão dos textos para o próximo livro. O título provisório é Não Sei. Ligeira diacronia: apesar de a expressão aparecer várias vezes, só comecei a usá-la regular e frequentemente alguns anos depois. Pouco importa. Não é a primeira e não será a última. 


Pelis meus cálculos, este vai vender um milhão de exemplares, mas coisa menos coisa.


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060625


Não sei se é impressão minha, mas nunca mais vi referências às nossas "raízes judeo-cristãs". Desapareceram da lista de tudo o que está errado na civilização ocidental. Foram substituídas pelas "alterações climáticas", pelas LGBTQ-fobias, pela exclusão e por mais meia dúzia de coisas.


Assistir ao vivo e a cores a estas alterações do zeitgeist é fascinante 


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À tarde voltou o Sol e trouxe o vento com ele. Já não tínhamos um dia assim há mais de duas semanas. Agora só falta entrar calor.


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Dilema: paro em Lagos para bancas ou tento ir directamente para Gibraltar? Decidi não decidir até domingo. Se tiver o norte que o GFS prevê, não paro. Se a previsão que estiver certa for a do ECMWF, paro. Até agora os americanos têm estado mais perto da verdade, pelo menos desde a Horta (até lá não tinha EC etc., raio de acrónimo que a comissão europeia foi arranjar. Não têm mais nada que fazer...)


A verdade é que não me apetece nada parar em Lagos. Quero apanhar-me no Mediterrâneo e depois entregar o bote, receber a massa e chegar a Genebra enquanto o T. lá está, história de ter a família toda junta nem que seja um dia.


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Treze nós de vento real, seis e meio no fundo, code zero e grande, vento pela alheta. Não posso pedir muito mais. 


Enfim, poder podia, mas não peço. Ser pago para ter uma tarde como esta - e como provavelmente amanhã será - chega.


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070625

PS - O gajo que escreveu isto já se esqueceu das semanas merdosas que acabou de passar. Decididamente o mar só tem presente, não tem passado nem futuro. [E não, amanhã não foi assim. Está outra vez encoberto e frio e agora vamos à bolina folgada com a genoa porque estamos no limite do code zero e não quero ir para sul do rumo, não vá ter de ir a Lagos.]


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A verdade é que não queria ira Lagos. Queria ir directamente para Gibraltar e dali para Ibiza com uma breve paragem em Cartagena para desembarcar o M., que tem uma reunião de família importante. Eu também tenho - ou tinha - mas não posso desembarcar...


Ou seja: acabei de mudar o rumo e vou mesmo parar lá. A bordo tenho tudo para ir directo: provisões, combustível e água. Só não há é tempo. Nem o proprietário nem eu e andar a arrastar-me a quatro nós numa bolina cada vez mais cerrada com esta vaca à espera da nortada não me parece boa ideia. "Quem sabe faz a hora / não espera acontecer".


Paragem relâmpago em Lagos e depois aquela execrável volta pelo golfo de Cadiz (ou de Huelva?). De momento o plano é parar em Gibraltar para bancas e aprovisionamento, mas isso será discutido com o proprietário. 


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Fiz pão. Ficou porreiro. W. dizia que o forno não era bom e por isso só podia fazer naans. O forno funciona muito bem, W. Pelo menos para nós, marinheiros. Para um cozinheiro profissional - perdão: um chef - talvez não. Mas nisto, meu caro, é como no resto: que faz o pão é o cozinheiro - perdão, chef. O forno só ajuda. 

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.