Se eu quisesse dizer a verdade - ah, a verdade, essa delícia tantas vezes invocada e tão raramente degustada - diria que o que me aconteceu hoje não me aconteceu muitas vezes. Há sempre a memória daquele regresso a Nakhodka, que me salvou a vida - e a mais trinta e muitos tripulantes; uma vez na Guadeloupe entrei a reboque do SNSM no porto, mas não foi um regresso a um porto do qual acabara de sair; outra vez regressei a Bocas del Toro, de onde saíra um ou dois dias antes, por causa de um problema no motor; e se não é tudo anda lá perto. Ou seja: posso dizer a verdade. Hoje voltei para trás, regressei ao porto de que largara havia pouco mais de uma hora. Por causa do tempo. Trinta nós no bico da proa não é vento para um cata. O barco gemia, implorava, ameaçava um chlique a cada vaga e não resisti. Voltei para Sant Antoni de Portmany.
A carcaça agradece, claro. Aquilo não deve ser muito diferença de levar uma tareia do Mike Tyson - com a ressalva de que nesse caso um murro seria suficiente e eu levei quase meia hora a decidir-me.
Ou seja: esta noite dormirei como se tivesse acabado de descobrir o sono.
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ADENDA - Uma velha tradição portuguesa da marinha mercante diz que em caso de problemas não se deve voltar ao porto de onde acaba de se sair. O não respeito dessa tradição salvou-me, já aqui o mencionei (e contei a história, bastante pedagógica).
Na verdade, tentar vestir a realidade, qualquer que seja a roupagem com que se o tente - tradição, ideologia, esperança - só tem um efeito: falsidade. A realidade tem de comer-se crua e nua. Se não for assim, não passa de mentira. (Para a qual, forçoso é reconhecer, tende invariavelmente a resvalar, como o pé para a chinela em algumas pessoas.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.