31.12.03

Baleias

Há dias fui ouvir um concerto do Chico António, um – justamente – reputado artista local que cultiva uma certa semelhança física com o Miles Davis. O concerto foi mau, ou pelo menos medíocre. O que mais me impressionou foram os seios da cantora: eram enormes, cada um deles maior que a cabeça dela. Os dois juntos faziam pensar numa baleia encalhada na praia. Cantava bem e era muito simpática.

Havia também uma dançarina, muito magrinha e cujo corpo parecia estar dividido em seis partes: dois braços, duas pernas, a cabeça e o torso. E cada uma destas partes, por sua vez divididas em sub-partes e sub-sub-partes, parecia dançar independentemente das outras, coordenadas somente por qualquer coisa exterior à míuda. Era impressionante vê-la mexer-se porque parecia que se estava a ver seis pessoas a dançar ao mesmo tempo e no mesmo ritmo – todas em harmonia, todas sincronizadas. Mas havia um só corpo e um só sorriso, que lhe atravessava a sua cara como uma linha de comboio, e era honesto, bonito, comunicativo.

Há anos que escrevo e re-escrevo um poema que começa assim:
Por que portos navegaste,
Por que corpos?
Por que praias encalhaste,
Por que ventres?

Não me lembro bem do resto: cada versão é diferente da anterior (e pior), e está perdida num computador diferente. Acaba mais ou menos assim:
Para que nortes navegaste,
Para que mortes,
Solidões.

Vem isto a propósito dos seios da cantora: quando as baleias encalham na praia morrem esmagadas pelo seu próprio peso: os orgãos esmagam os que lhes estão por baixo. As baleias morrem esmagadas por si-próprias, como eu. Só que eu ainda não estou morto, e ainda não perdi a vontade de lutar. Afinal de contas conheço muitas histórias de pessoas em situações piores que a minha. Como a daquele pescador de bacalhau que se perdeu no bote e que apertou as mãos à volta dos remos para que quando estas gelassem ele pudesse continuar a remar – e assim chegou à Islândia. Tiveram que lhe serrar os punhos. Este mesmo gajo atravessou mais tarde o Atlântico sozinho, à vela, se bem que eu ainda esteja para perceber como é que ele fez sem as mãos – e não só o fez, mas ainda foi mais rápido que o Alain Gerbault, que tinha as duas mãos e escrevia muito bem, mas que para navegar mais valia estar quieto.

Ou então uma das minhas histórias favoritas, a do capitão “Fora ou Dentro”, como ficou a ser conhecido. Ele era mau, esse capitão, e nos tempos em que ser mau era a norma, ser considerado mau implicava certamente aquilo a que os ingleses chamariam “um mau carácter”. O homem era odiado, profundamente odiado pela tripulação - a qual um dia decidiu deitá-lo ao mar. Ora se há um tabu no mar é o de que não se deitam homens vivos ao mar - pode-se castigá-los, e as possibilidades de castigo são inúmeras, limitadas somente pela imaginação ou pela crueldade de quem castiga: pode enforcar-se a vítima, deixá-la morrer de fome, passar-se-lhe os ferros, dar-se-lhe a volta por debaixo do casco do navio amarrada pelos pés e pelas mãos – mas não se deita uma pessoa viva ao mar. E, claro, muito menos o capitão. Mas este capitão era mau, horrivelmente mau, e um dia um grupo de homens pegou nele e passou-o pela borda fora. Quando ele estava do outro lado da balaustrada os homens não conseguiram largá-lo (é difícil matar uma pessoa, não é? Esperar que ela morra é mais fácil) e ele ali ficou, nas mãos de marinheiros a quem ele tinha batido, injuriado, humilhado, insultado, a dois metros de uma água na qual sobreviveria quando muito cinco minutos. E como a tripulação hesitava, disse-lhe:
- Ou fora ou dentro, seus filhos da puta, que isto é que não é lugar para um homem.
Os pescadores não tiveram coragem de o deixar cair, puxaram-no para bordo, e o capitão arreou-lhes um arraial de porrada que ainda hoje é célebre nos anais da pesca do bacalhau. E fez uma participação disciplinar, que era o castigo supremo, nessa altura. Quando os hábitos “novos” chegaram ao bacalhau, os pescadores pediam aos jovens oficiais que lhes batessem, mas que não participassem à companhia as faltas e erros que tinham cometido.

Nunca estive, enquanto naveguei, em condições muito extremas: tenho, como cada um de nós, a minha quota-parte de mau tempo, da qual a pior foi sem dúvida a cauda de ciclone que apanhei no Atlântico, e a minha parte de dias sem vento, que são igualmente horríveis. Uma vez vinha sozinho dos Açores no “Aquarelle”, um barco cuja beleza estava muito longe de corresponder à do nome. Não havia um sopro de vento, e tinha arriado o pano e decidido ir ver o que se passava com o alternador, que não estava a carregar as baterias como devia ser.

A meio do trabalho, e por nenhuma razão em especial, resolvi vir cá acima. A vinte metros do barco passava, imperial, uma baleia de bossa. O mar estava calmo como água no lava-loiças, transparente, e o efeito de lupa fazia a baleia parecer ainda maior do que na realidade era. Mas ela era, garantidamente, maior do que os dez metros do barco, e muito mais pesada.

Estava a passar-me por bombordo, calma, imponente, e desapareceu. Eu voltei para baixo e continuei a desmontar o alternador. Mas pouco depois a mesma intuição voltou a fazer-me subir. E a baleia desta vez passava por estibordo, em sentido contrário, e mais perto ainda do barco. Seriam precisos dons de escritor muito, muito superiores aos meus para dar conta da beleza do espectáculo: era indescrítivel. O mar estava liso como alguns ventres de que me lembrarei toda a vida, e totalmente transparente. A baleia não estava a mais de quinze metros de mim. Podia ver-lhe a pele e as inúmeras marcas que a adornavam, lembrança talvez de titânicos combates com gigantescos monstros das profundezas; podia sobretudo cheirá-la – e não há na terra ou no mar cheiro pior, mais pestilento, mais infecto do que o de uma baleia. Há qualquer coisa de mágico no cheiro da baleia, de tão mau, tão primordial, tão de profundiis.

E ali estava, pano arriado, um magnífico dia de sol, a duzentas e cinquenta milhas dos Açores, na companhia de uma baleia de bossa que pesava pelo menos o dobro do que pesava o meu “Aquarelle” e que media um bom metro mais do que ele. A cena era linda, maravilhosa, mas eu estava inquieto: semanas antes tinha lido a história de um solitário bastante experiente que tinha chamado o CROSSMED (o organismo francês de busca e salvamento no mar) porque tinha uma baleia a coçar as costas na quilha do barco. Era um tipo experiente, dizia ao CROSS que sabia que não havia nada a fazer, ele só lhes pedia que ficassem alerta porque os nervos estavam quase a abandoná-lo e talvez fosse preciso eles irem buscá-lo, se a quilha cedesse. Ali onde eu estava não havia CROSS nem apoio psicológico – e mesmo tendo eu uma confiança ilimitada no “Aquarelle”, que era uma espécie de cofre forte flutuante, não tinha vontade de servir de escova de costas a uma baleia que tinha sobrevivido a todos os combates de que ela mostrava as cicatrizes. E da qual eu via os olhos, cruéis, pequenos e, parecia-me, fixos em mim.

Via-lhe os olhos e a pele com as cicatrizes e crustáceos agarrados, depois vi-lhe a cauda – e aí vi que tinha de me pôr a andar dali para fora a toda a força: a baleia estava a dar meia-volta mesmo à minha popa, a meia-dúzia de metros do barco.

Desci a correr para pôr o alternador em condições de poder ligar o motor. Quando subi, já ela estava ao meu lado outra vez, agora muito mais perto. Pus o motor a trabalhar e ela assustou-se: expirou um grande jacto de água, cujo cheiro era ainda pior, se possível, e mergulhou batendo com a cauda na água. O barulho foi ensurdecedor. Parecia que tinham dado um tiro com uma peça de artilharia. O “Aquarelle” vibrou até ao galope do mastro. O meu coração batia tão forte que fechei a boca, de medo que ele se fosse embora e me deixasse ali sozinho.

Mas o vapor de água e o cheiro repugnante dissiparam-se rapidamente. Todos os traços do mergulho se desvaneceram da água, e de repente tudo estava calmo outra vez, o “Aquarelle” sozinho no mar e eu sozinho dentro dele. Ao fim de meia hora parei o motor; depois, encontrei a avaria do alternador e acabei de o montar. De vez em quando olhava para baixo, para o azul do mar, sabendo que era perfeitamente inútil. Não a veria chegar, se ela se quisesse vingar do susto que eu lhe tinha pregado.

São animais surpreendentes, as baleias. Nos anos que se seguiram vi muitas, e ouvi muitas histórias delas. E os homens que as caçavam também são impressionantes. Na Horta conheci um desses arpoadores (de cachalotes, que nos Açores é o que eles caçavam: as baleias afundam-se quando mortas), um dos últimos. Esse tipo era grande: cada braço dele parecia uma das minhas coxas, e cada coxa dele era do tamanho do meu torso. Deslocava-se numa motocicleta ridícula, que desaparecia totalmente debaixo daquela massa de músculos. Só se lhe via a parte inferior dos pneus, completamente vazios porque não há pressão que suporte o peso de tamanho monolito. Via-o passar todos os dias à frente do Peter e os braços dele faziam-me sentir uma certa pena dos bichos. Sempre pensei que o problema dele devia ser medir a força com que atirava o arpão, não fosse este atravessar o cachalote e perder-se nas profundezas do mar.

Eu também precisava de uma força assim, para lutar contra estas baleias que me invadem e me sufocam e me assaltam de todos os lados.

1 comentário:

  1. olha, é divertidíssimo o teu texto... sabes que tenho de escrever uma cena onde se retalha uma baleia e estou à rasca, ainda te vou pedir ajuda... abraço, cabrita

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.