30.3.06
Selenitas
Ele costumava viver na Lua, até que se apercebeu que era para lá que os cães todos uivavavam. Nesse dia mudou-se.
27.3.06
Precaridade
Os estudantes (e não só) franceses lutam contra a precaridade. É compreensível: preferem a estabilidade do desemprego.
24.3.06
Arquitectura, psicologia
O Princípe de Salina (ou o sobrinho por ele), no Gattopardo, diz que "uma casa da qual se conhecem todas as divisões não merece ser habitada". O mesmo se pode dizer das pessoas, não é?
23.3.06
Meteorologia genebrina
Hoje houve sol, pela primeira vez em meia dúzia de dias. Durou pouco: o cinzento - ou melhor, os cinzentos - destes últimos dias voltaram. Houve-os de todas as gradações possíveis, do quase branco ao quase preto. Podia ser belo - mas hoje é apenas deprimente.
Esta cidade fascina-me: como é que um sítio com tantos ingredientes tão bons - o sistema político (para mim o melhor do mundo), a quantidade de mulheres bonitas (Genève deve ser uma das raras cidades do mundo em que o ratio mulheres feias / mulheres bonitas é inferior a 1), a organização, a oferta cultural, as lojas de discos e as livrarias que esta tem, os mercados, consegue ser tão invivável? Não é só o clima: é esta impressão de que nada se move (e pur si muove), este aspecto refastelado, esta ausência de sensualidade (das ruas, dos prédios, dos cafés, dos bares), esta impressão que tudo, e não só o céu, é cinzento...
Há, porém, momentos fantásticos - e um deles deve estar quase a chegar: é o primeiro dia de calor, o primeiro dia em que as raparigas saiem para a rua "nuas", sem as roupas de inverno, e de repente apercebemo-nos que o frio acabou, ou está quase para acabar. As esplanadas enchem-se, as caras sorriem, tudo se torna mais leve, mais claro, parece uma sala à qual se limpou o pó de anos. Hoje foi quase esse dia, quase. No domingo a temperatura vai subir bastante, mas não estarei cá e estará a chover, de qualquer forma.
No Outono acontece o contrário: as raparigas vestem-se e as janelas fecham-se, na cozinha os guizados, os ragoûts e os tintos pesados substituem as saladas e os brancos alegres, e tudo o que durante alguns meses cintilou volta ao normal, cinzento. É como se a luz, a festa, os sentidos, fossem uma interrupção, uma aberração.
Esta cidade fascina-me: como é que um sítio com tantos ingredientes tão bons - o sistema político (para mim o melhor do mundo), a quantidade de mulheres bonitas (Genève deve ser uma das raras cidades do mundo em que o ratio mulheres feias / mulheres bonitas é inferior a 1), a organização, a oferta cultural, as lojas de discos e as livrarias que esta tem, os mercados, consegue ser tão invivável? Não é só o clima: é esta impressão de que nada se move (e pur si muove), este aspecto refastelado, esta ausência de sensualidade (das ruas, dos prédios, dos cafés, dos bares), esta impressão que tudo, e não só o céu, é cinzento...
Há, porém, momentos fantásticos - e um deles deve estar quase a chegar: é o primeiro dia de calor, o primeiro dia em que as raparigas saiem para a rua "nuas", sem as roupas de inverno, e de repente apercebemo-nos que o frio acabou, ou está quase para acabar. As esplanadas enchem-se, as caras sorriem, tudo se torna mais leve, mais claro, parece uma sala à qual se limpou o pó de anos. Hoje foi quase esse dia, quase. No domingo a temperatura vai subir bastante, mas não estarei cá e estará a chover, de qualquer forma.
No Outono acontece o contrário: as raparigas vestem-se e as janelas fecham-se, na cozinha os guizados, os ragoûts e os tintos pesados substituem as saladas e os brancos alegres, e tudo o que durante alguns meses cintilou volta ao normal, cinzento. É como se a luz, a festa, os sentidos, fossem uma interrupção, uma aberração.
Serviço Público - Blogs
Navegando no Tempo e As Fadas Também se Enganam no Caminho?, da mesma autora: óptimas fotografias, textos interessantes (como na Playboy).
E este (excerto: "Por isso, utilizo este blogue, para espetar, dilacerar, furar aos poucos, queimar com pontas de cigarro, esfregar com gotas de álcool numa ferida exposta, dar beliscões, vomitar cá para fora, despejar pequenas doses de veneno. A mim própria. Que se foda ainda ser quarta. Nunca liguei ao calendário.")
E este (excerto: "Por isso, utilizo este blogue, para espetar, dilacerar, furar aos poucos, queimar com pontas de cigarro, esfregar com gotas de álcool numa ferida exposta, dar beliscões, vomitar cá para fora, despejar pequenas doses de veneno. A mim própria. Que se foda ainda ser quarta. Nunca liguei ao calendário.")
Um gigantesco passo
De Villepin recua. A França vai, uma vez mais, dar um gigantesco passo para não sair de onde está.
21.3.06
Suite et pas fin (il n'y a jamais de fin, hélas)
Encontrei a senhora no comboio. Ofereci-lhe um ramo de flores, enorme.
Ela não sabia que as flores não eram minhas: sou empregado de uma florista sem dinheiro, que me obriga a entregar as encomendas de metro, autocarro, comboio. Já lhe pedi uma bicicleta, ao menos, mas nem para isso a minha patroa tem dinheiro. Ela não sabe dizer que não a um cliente.
Toujours est-il que je l'ai vue dans le train, cette dame. Aussitôt suis-je tombé amoureux d'elle: ni trop belle, ni trop laide, son sens de l'humour ressortait dans son regard comme la marque de lunettes de soleil dans un visage bronzé.
Dei-lhe as flores num gesto impulsivo: gostei dos cabelos despenteados, dos traços finos, do olhar trocista. Estávamos longe da próxima paragem; devia falar com ela. Não lhe disse nada. Nada. "Ofereço-lhe, minha senhora, estas flores porque simpatizei com a sua cara; porque é bonita; porque as merece; porque oferecê-las me coloca numa situação periclitante". Nada. Quando muito: "Algo em si atraiu estas flores, não fui eu que lhas dei". Quando muito. Talvez lhe tenha dito isso: "Não fui eu: foi você que se ofereceu estas flores por meu intermédio. Um pobre imbecil veio cá comprá-las hoje de manhã. Queria, disse-me, um bouquet "conservador" - "conservador", foi este o termo que empregou".
- Ofereço-lhe, minha senhora, estas flores. Espero que goste delas. Se não gostar, por favor, não me diga.
"Se não gostar, por favor não me diga: prefiro a ignorância, sabe? É ela que me faz viver. Ou a esperança, são a mesma coisa". O comboio parou. Era um desses comboios suburbanos, cheio de caixeiras de supermercado, de vendedoras de roupa de marca, de contabilistas e de bêbados precoces. Saí sem a ver, e só no cais me apercebi que ela saíra também. Tinha um andar desengonçado, como se quisesse ter uma perna mais curta que a outra. Levava as flores bem altas, visíveis, e olhava em frente. Eu queria voltar para trás, ir buscar mais flores, refazer a encomenda original.
Claro que não: queria segui-la, ir para casa dela, deitá-la numa cama e apaixonar-me. Nessa altura procurava, desesperado, uma mulher, se possível sem filhos, quarentona recente ou trintona tardia (gosto de mulheres mais velhas do que eu, sempre gostei), com sentido de humor e um aspecto geral, como dizer?, sensual. Objectivos esses inalcançáveis sem me apaixonar, claro. Por isso me apaixonava: por uma professora indiana entrevista à porta da universidade, por uma empregada ucraniana no café, pela secretária da pessoa com quem me iria encontrar para um emprego, por essa pessoa mesmo se tivesse dento do critério "sexo", "idade" e "aspecto". Apaixonava-me a torto e a direito, mas nunca tinha oferecido flores - que não eram, ainda por cima, minhas.
Enfim, acabei por me ver em casa dela, em pleno campo e com uma cama enorme e ruidosa. Nesta ordem: primeiro ela, depois o campo, depois a casa, depois a cama, depois o ruído.
II
Fui despedido, claro, quando voltei à florista dois ou três dias depois. Mas fiquei a viver com a Isabel; - o que era, quase, um emprego a tempo inteiro. De manhã dava de comer e beber aos numerosos animais que ela mantinha: um porquinho-da-índia, um coelho anão, dois cachorros, meia dúzia de caracóis e um gato; passeava os cachorros no jardim à frente de casa; comprava os legumes frescos para o dia, no mercado biológico; passava o aspirador; fazia o almoço; lavava a loiça; dormia a sesta; passeava os cães; fazia o jantar. A todas essas tarefas me dedicava grato: tudo era melhor do que ter de oferecer flores no comboio à primeira senhora gira que encontrava.
Isabel não tinha uma perna mais pequena do que outra: tinha-as iguais, pequenas, bonitas, mas arqueadas. Montava a cavalo desde miúda, com a mesma energia e determinação com que me levara para casa. O cavalo, um alazão enorme, completo, chamava-se Red Promise e tinha uma potência ilimitada. Uma vez vi-o saltar um metro e sessenta parado. Parado. Nos concursos era um prazer vê-lo: arrancava num galope desenfreado para os obstáculos e quando parecia que ia levar tudo pela frente reduzia a velocidade, e levantava vôo na vertical, ou quase, como um helicóptero.
Era arquitecta, passava muito tempo em casa, e longos períodos fora, porque tinha obras pela Europa toda. Não sei o que viu em mim, eterno aprendiz de fotógrafo e moço de recados de uma florista falida. Eu sei o que vi nela.
III
Vous ne saurez jamais, très chère, combien d'heures de métro, combien de kilomètres de vie, combien de regards croisés m'ont conduit à vous. Un jour, quand je serai grand et libre, j’écrirai un livre que vous sera dédié, plein de mots de vingt ans, de mots de quarante ans, de mots du début des jours jusqu’à leur fin.
Ela não sabia que as flores não eram minhas: sou empregado de uma florista sem dinheiro, que me obriga a entregar as encomendas de metro, autocarro, comboio. Já lhe pedi uma bicicleta, ao menos, mas nem para isso a minha patroa tem dinheiro. Ela não sabe dizer que não a um cliente.
Toujours est-il que je l'ai vue dans le train, cette dame. Aussitôt suis-je tombé amoureux d'elle: ni trop belle, ni trop laide, son sens de l'humour ressortait dans son regard comme la marque de lunettes de soleil dans un visage bronzé.
Dei-lhe as flores num gesto impulsivo: gostei dos cabelos despenteados, dos traços finos, do olhar trocista. Estávamos longe da próxima paragem; devia falar com ela. Não lhe disse nada. Nada. "Ofereço-lhe, minha senhora, estas flores porque simpatizei com a sua cara; porque é bonita; porque as merece; porque oferecê-las me coloca numa situação periclitante". Nada. Quando muito: "Algo em si atraiu estas flores, não fui eu que lhas dei". Quando muito. Talvez lhe tenha dito isso: "Não fui eu: foi você que se ofereceu estas flores por meu intermédio. Um pobre imbecil veio cá comprá-las hoje de manhã. Queria, disse-me, um bouquet "conservador" - "conservador", foi este o termo que empregou".
- Ofereço-lhe, minha senhora, estas flores. Espero que goste delas. Se não gostar, por favor, não me diga.
"Se não gostar, por favor não me diga: prefiro a ignorância, sabe? É ela que me faz viver. Ou a esperança, são a mesma coisa". O comboio parou. Era um desses comboios suburbanos, cheio de caixeiras de supermercado, de vendedoras de roupa de marca, de contabilistas e de bêbados precoces. Saí sem a ver, e só no cais me apercebi que ela saíra também. Tinha um andar desengonçado, como se quisesse ter uma perna mais curta que a outra. Levava as flores bem altas, visíveis, e olhava em frente. Eu queria voltar para trás, ir buscar mais flores, refazer a encomenda original.
Claro que não: queria segui-la, ir para casa dela, deitá-la numa cama e apaixonar-me. Nessa altura procurava, desesperado, uma mulher, se possível sem filhos, quarentona recente ou trintona tardia (gosto de mulheres mais velhas do que eu, sempre gostei), com sentido de humor e um aspecto geral, como dizer?, sensual. Objectivos esses inalcançáveis sem me apaixonar, claro. Por isso me apaixonava: por uma professora indiana entrevista à porta da universidade, por uma empregada ucraniana no café, pela secretária da pessoa com quem me iria encontrar para um emprego, por essa pessoa mesmo se tivesse dento do critério "sexo", "idade" e "aspecto". Apaixonava-me a torto e a direito, mas nunca tinha oferecido flores - que não eram, ainda por cima, minhas.
Enfim, acabei por me ver em casa dela, em pleno campo e com uma cama enorme e ruidosa. Nesta ordem: primeiro ela, depois o campo, depois a casa, depois a cama, depois o ruído.
II
Fui despedido, claro, quando voltei à florista dois ou três dias depois. Mas fiquei a viver com a Isabel; - o que era, quase, um emprego a tempo inteiro. De manhã dava de comer e beber aos numerosos animais que ela mantinha: um porquinho-da-índia, um coelho anão, dois cachorros, meia dúzia de caracóis e um gato; passeava os cachorros no jardim à frente de casa; comprava os legumes frescos para o dia, no mercado biológico; passava o aspirador; fazia o almoço; lavava a loiça; dormia a sesta; passeava os cães; fazia o jantar. A todas essas tarefas me dedicava grato: tudo era melhor do que ter de oferecer flores no comboio à primeira senhora gira que encontrava.
Isabel não tinha uma perna mais pequena do que outra: tinha-as iguais, pequenas, bonitas, mas arqueadas. Montava a cavalo desde miúda, com a mesma energia e determinação com que me levara para casa. O cavalo, um alazão enorme, completo, chamava-se Red Promise e tinha uma potência ilimitada. Uma vez vi-o saltar um metro e sessenta parado. Parado. Nos concursos era um prazer vê-lo: arrancava num galope desenfreado para os obstáculos e quando parecia que ia levar tudo pela frente reduzia a velocidade, e levantava vôo na vertical, ou quase, como um helicóptero.
Era arquitecta, passava muito tempo em casa, e longos períodos fora, porque tinha obras pela Europa toda. Não sei o que viu em mim, eterno aprendiz de fotógrafo e moço de recados de uma florista falida. Eu sei o que vi nela.
III
Vous ne saurez jamais, très chère, combien d'heures de métro, combien de kilomètres de vie, combien de regards croisés m'ont conduit à vous. Un jour, quand je serai grand et libre, j’écrirai un livre que vous sera dédié, plein de mots de vingt ans, de mots de quarante ans, de mots du début des jours jusqu’à leur fin.
16.3.06
Evolução
Quando viajamos, ou fazemos amor, apercebemo-nos que a evolução não fez bem o seu trabalho - precisamos de mais braços, mais mãos.
9.3.06
A luz e as descrições da luz
"On eût dit qu'avant de mourir le soleil rejetait les combinaisons trop raffinées de teintes et semait toutes les couleurs principales de son prisme. Son dernier présent sur la terre, après la chaleur et la lumière, c'étaient des couleurs enfantines. Bientôt le monde ne fut plus éclairé que par du violet, de l'indigo, de l'orangé: la lumière, cadavre étincelant, se décomposait. Puis l'aubergiste vît le soleil disparaître; un peu d'écume jaune marqua au coin la fin de son apoplexie. et la terre enfin seule commença à vivre pour elle même."
Maurice Blanchot, in "Thomas l'Obscur, Première version, 1941", Ed. Gallimard, Paris, 2005.
(No seguimento disto, claro).
Maurice Blanchot, in "Thomas l'Obscur, Première version, 1941", Ed. Gallimard, Paris, 2005.
(No seguimento disto, claro).
7.3.06
6.3.06
Retratos
I
Era uma míuda estranha: o pai educara-a na crença de que ela não tinha características, só tinha defeitos.
II
A esperança era a gasolina dele, e tal como um carro pára se não tiver combustível, mas volta a funcionar assim que lhe enchem o tanque, ele tinha uma capacidade ilimitada de se atestar de fé.
III
A unica coisa que queria era ser independente. Morreu cedo: deixou-se devorar pelo seu objectivo, em vez de ser ele a devorá-lo.
Era uma míuda estranha: o pai educara-a na crença de que ela não tinha características, só tinha defeitos.
II
A esperança era a gasolina dele, e tal como um carro pára se não tiver combustível, mas volta a funcionar assim que lhe enchem o tanque, ele tinha uma capacidade ilimitada de se atestar de fé.
III
A unica coisa que queria era ser independente. Morreu cedo: deixou-se devorar pelo seu objectivo, em vez de ser ele a devorá-lo.
4.3.06
Pátria
"Contra os canhões, marchar, marchar".
Não deve haver frase que mais me ligue à pátria do que esta.
Não deve haver frase que mais me ligue à pátria do que esta.
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