6.4.11

Livro de bordos - 17

(Em rigor, acho que o livro de bordos pode continuar mais um dia ou dois.)

Passemos a viagem de avião: foi igual a todas. Não deve haver objecto, moderno ou antigo, que eu mais e mais injustamente deteste. Passo a vida neles (ou pelo menos passei); não há maneira de os apreciar. Salvo raras e honrosas excepções não me lembro de uma viagem de que tenha gostado do princípio ao fim - se bem algumas tenham passado depressa, inegavelmente. (Não incluo, claro, os voos em DC3, Caravan ou King Air do Burundi ou do Zaire, nem os voos de reconhecimento de barras que, adolescente, fazia com o meu Pai em Moçambique. Mas isso são outros ares, outras asas).

Chego a Paris às 7 da manhã e nos dois minutos que levo de Orly Sud a Orly Ouest vejo mais gravatas e mais bâton do que vi nos últimos cinco meses. E mais gente apressada. Este mundo já não é o meu; nada a fazer: cheguei ao ponto para lá do qual tudo o que está para trás deixa de contar. Com a t-shirt e as sandálias (com meias, está frio) os outros devem ver-me da mesma forma.

No aeroporto os portugueses reconhecem-se de longe. Têm o facies fechado, carregado, como se viajassem num mundo só deles, de que só eles identificam os horrores (isto quando vão sozinhos. Em grupo são sorridentes, abertos e falam muito alto); e os fatos mal cortados, com aquele vinco horizontal atrás do pescoço que se resolve com cinco minutos de alfaiate e um bocadinho de educação.

Pela primeira vez em muito tempo chego a Orly num modo neutro, ansioso por me ir embora mas sem relação com o aeroporto ou Paris. Estão no outro mundo, no que já foi. Só me interessa o que aí vem. Sinto-me como se fosse a um enterro precedido de um baptizado: só este me apaixona. [Esta imagem é boa de mais para se minha; só não leva aspas porque não sei de quem é].

Antecipo os prazeres e os horrores de Lisboa: reencontrar os amigos, as ruas, os cheiros, a cordialidade do nosso povo; e as demoras da burocracia, a incapacidade (ou, pior ainda, a falta de vontade) de tomar decisões rapidamente. Sei que partirei sem que tudo o que tenho para resolver fique resolvido. Paciência. Há um mundo novo à espera; que o velho vá para o diabo que o carregue.

2 comentários:

  1. Só não me zango, Luís – eu, do mundo velho – porque não lhe invejo o mundo novo. Invejar-lho-ia se bordejasse os círculos polares. Bordejando os trópicos,… não. ;-D

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  2. Gostaria imenso, Luísa, de bordejar os círculos polares - tanto um como o outro. E ainda sonho com uma viagem - infelizmente pouco provável, por uma questão de datas - para as Américas via Islândia, Groenlândia, Terra Nova.

    (E não menciono o Horn, que há tanto tempo espera por mim).

    Isto dito, não se devia zangar. V. é a última pessoa que eu suportaria ver zangada comigo.

    Estou simplesmente a pôr em prática uma injunção de uma amiga minha de há três ou quatro vidas, que dizia que de dez em dez anos devemos todos mudar de vida (ela dizia 15, mas era Suíça e os Suíços têm um tempo mais lento do que o nosso, não é?)

    Conhece um livro chamado Voeux Pieux, da Marguerite Yourcenar? Tudo isto não passa de votos piedosos. Estou no Jardim da Estrela, a Primavera está aí (se bem muitas das jovens senhoras não se tenham, hélas, apercebido disso) e escolhi, ó alma alfacinha, um prego no prato, como primeiro repasto em Portugal.

    Hallelujah!

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.