Nesta segunda parte deste breve tratado de saber viver, etc. vou abordar alguns aspectos infungíveis (é uma palavra bonita que aprendi recentemente) da vida nos países africanos ou similares.
A primeira coisa a ter sistematicamente presente no espírito é que ninguém é obrigado a emigrar ou a viver temporariamente noutro país. As pessoas vão para países diferentes dos seus porque querem. Que eu saiba não há guerrilheiros barbudos armados de Kalashnikov forçando-as a irem para onde quer que seja. (Isto aplica-se igualmente aos "cooperantes" e aos "humanitários", que regra geral fazem mais mal do que bem mas estão cheios de boa vontade e pensam que por causa disso podem fazer o que querem.)
Não devemos esquecer-nos, portanto, de que estamos num país que não é nosso; somos hóspedes. E não compete aos hóspedes ensinar aos anfitriões como governar a sua casa. Isto é tão importante como difícil (sobretudo para nós, portugueses, que sempre vimos nos estrangeiros que nos visitam - se forem do Norte, claro - seres superiores, civilizados, melhores do que nós; e esperamos semelhante antitude quando visitamos "os pretos").
Um erro muito comum é pensar que uma pessoa, só porque não fala correctamente português (ou inglês ou francês) é burra. "Estes pretos são estúpidos, um gajo diz-lhes as coisas e eles não percebem". Não são, e muitas vezes não percebem, ou exprimem mal que perceberam, pela razão simples de que a língua que falamos não é a deles. Habituados que estamos a julgar a inteligência das pessoas pela forma como se exprimem - o que é um erro - pensamos que não saber exprimir-se é sintoma de burrice. Não é.
Igualmente frequente é pensar que por não terem o nosso sistema de educação "não sabem nada". Isto é duplamente falso: por um lado os nacionais dos países que nos acolheram têm conhecimentos que lhes permitem sobreviver naquele contexto (em muitos países, a sanção por não perceber como funciona o sistema não é a assistência social ou o RMI. É a morte); por outro, bastas vezes, têm conhecimentos formais ao nível dos nossos - é frequente em África encontrar engenheiros formados na Rússia ou em países do leste europeu, por exemplo. Vítimas da guerra fria, é certo; mas não ignorantes.
Lembro-me com particular acuidade de assistir a um diálogo no Zaire entre um jovem suiço de vinte e cinco anos, acabadinho de sair da universidade e um engenheiro zairense sobre um problema de pistas de aviação. Quando acabaram, o jovem suíço afastou-se, orgulhoso e satisfeito com a sua generosidade; o engenheiro - uma das pessoas mais competentes com quem tive o prazer e a honra de trabalhar - sorriu-me, encolheu os ombros e continuou a fazer o que fazia como sempre fizera, claro. Mais tarde tentei explicar ao jovem que aquele senhor era engenheiro, tinha mais anos de experiência do que ele de vida, que era local e conhecia o país melhor do que, etc. Não serviu de nada. (Poucos meses depois o jovem suíço foi evacuado, fomos todos; e o engenheiro lá ficou).
Por fim (por hoje e quiçá mais): deve ter-se presente que a estupidez é o melhor escudo. Toda a gente acha detestável a maldade, mas desculpa (mais ou menos) a estupidez. Portanto, uma pessoa que depende de outra para viver e não tem muitas formas de se defender das agressões, violências (físicas ou não) que sofre - ou, tantas vezes, para se vingar delas, pura e simplesmente - opta pela "estupidez". É um escudo fácil, eficaz e rende bastante.
A este respeito lembro-me de uma história que se passou - não acredito que se tenha passado; penso que é um mito. Mas gosto dela - durante o primeiro choque do petróleo, em 72 ou 73. Nessa altura o governo decidiu criar uma quota de vinte litros de gasolina por automóvel; mas um senhor, mais esperto do que os outros, conseguiu comprar dois barris - 440 litros, para quem não sabe - de combustível. Chegou a casa e disse ao empregado "faz um buraco no jardim e põe a gasolina lá dentro". Coisa que o funcionário fez, com a habitual diligência. Quando acabou bateu à porta de casa e perguntou ao patrão "a gasolina está nos buracos. Agora onde ponho os barris?"
Esta história era contada na então Lourenço Marque para ilustrar a "estupidez" dos pretos. Eu acho-a a mais bonita história de vingança que conheço.
Ou seja: devemos pensar que temos em face de nós pessoas inteligentes, que desenvolveram um conjunto de conhecimentos que lhes permitem viver onde vivem, que são nosso anfitriões - mesmo sendo nossos subalternos. Devem ser respeitadas e compreendidas. Tal como se deve aprender a língua do país para onde se emigra, deve aprender-se a conhecer a cultura e mentalidade dos seus povos.
A primeira coisa a ter sistematicamente presente no espírito é que ninguém é obrigado a emigrar ou a viver temporariamente noutro país. As pessoas vão para países diferentes dos seus porque querem. Que eu saiba não há guerrilheiros barbudos armados de Kalashnikov forçando-as a irem para onde quer que seja. (Isto aplica-se igualmente aos "cooperantes" e aos "humanitários", que regra geral fazem mais mal do que bem mas estão cheios de boa vontade e pensam que por causa disso podem fazer o que querem.)
Não devemos esquecer-nos, portanto, de que estamos num país que não é nosso; somos hóspedes. E não compete aos hóspedes ensinar aos anfitriões como governar a sua casa. Isto é tão importante como difícil (sobretudo para nós, portugueses, que sempre vimos nos estrangeiros que nos visitam - se forem do Norte, claro - seres superiores, civilizados, melhores do que nós; e esperamos semelhante antitude quando visitamos "os pretos").
Um erro muito comum é pensar que uma pessoa, só porque não fala correctamente português (ou inglês ou francês) é burra. "Estes pretos são estúpidos, um gajo diz-lhes as coisas e eles não percebem". Não são, e muitas vezes não percebem, ou exprimem mal que perceberam, pela razão simples de que a língua que falamos não é a deles. Habituados que estamos a julgar a inteligência das pessoas pela forma como se exprimem - o que é um erro - pensamos que não saber exprimir-se é sintoma de burrice. Não é.
Igualmente frequente é pensar que por não terem o nosso sistema de educação "não sabem nada". Isto é duplamente falso: por um lado os nacionais dos países que nos acolheram têm conhecimentos que lhes permitem sobreviver naquele contexto (em muitos países, a sanção por não perceber como funciona o sistema não é a assistência social ou o RMI. É a morte); por outro, bastas vezes, têm conhecimentos formais ao nível dos nossos - é frequente em África encontrar engenheiros formados na Rússia ou em países do leste europeu, por exemplo. Vítimas da guerra fria, é certo; mas não ignorantes.
Lembro-me com particular acuidade de assistir a um diálogo no Zaire entre um jovem suiço de vinte e cinco anos, acabadinho de sair da universidade e um engenheiro zairense sobre um problema de pistas de aviação. Quando acabaram, o jovem suíço afastou-se, orgulhoso e satisfeito com a sua generosidade; o engenheiro - uma das pessoas mais competentes com quem tive o prazer e a honra de trabalhar - sorriu-me, encolheu os ombros e continuou a fazer o que fazia como sempre fizera, claro. Mais tarde tentei explicar ao jovem que aquele senhor era engenheiro, tinha mais anos de experiência do que ele de vida, que era local e conhecia o país melhor do que, etc. Não serviu de nada. (Poucos meses depois o jovem suíço foi evacuado, fomos todos; e o engenheiro lá ficou).
Por fim (por hoje e quiçá mais): deve ter-se presente que a estupidez é o melhor escudo. Toda a gente acha detestável a maldade, mas desculpa (mais ou menos) a estupidez. Portanto, uma pessoa que depende de outra para viver e não tem muitas formas de se defender das agressões, violências (físicas ou não) que sofre - ou, tantas vezes, para se vingar delas, pura e simplesmente - opta pela "estupidez". É um escudo fácil, eficaz e rende bastante.
A este respeito lembro-me de uma história que se passou - não acredito que se tenha passado; penso que é um mito. Mas gosto dela - durante o primeiro choque do petróleo, em 72 ou 73. Nessa altura o governo decidiu criar uma quota de vinte litros de gasolina por automóvel; mas um senhor, mais esperto do que os outros, conseguiu comprar dois barris - 440 litros, para quem não sabe - de combustível. Chegou a casa e disse ao empregado "faz um buraco no jardim e põe a gasolina lá dentro". Coisa que o funcionário fez, com a habitual diligência. Quando acabou bateu à porta de casa e perguntou ao patrão "a gasolina está nos buracos. Agora onde ponho os barris?"
Esta história era contada na então Lourenço Marque para ilustrar a "estupidez" dos pretos. Eu acho-a a mais bonita história de vingança que conheço.
Ou seja: devemos pensar que temos em face de nós pessoas inteligentes, que desenvolveram um conjunto de conhecimentos que lhes permitem viver onde vivem, que são nosso anfitriões - mesmo sendo nossos subalternos. Devem ser respeitadas e compreendidas. Tal como se deve aprender a língua do país para onde se emigra, deve aprender-se a conhecer a cultura e mentalidade dos seus povos.
Completamente de acordo. Nunca fui emigrante,mas vivi alguns meses fora, em locais diferentes e se bem que não tenha essa sua experiência, deu para perceber que assim é. Gostei muito do que disse. Há pessoas que não sabem olhar, entender e comunicar, normalmente por se acharem seres superiores ou oriundos de países e culturas "superiores". Verifica-se isso normalmente com gente pouco culta (cultura para mim, é para além de muitas outras coisas o perceber-se o outro, saber escutá-lo, uma espécie de poiésis grega) e fundamentalmente, muito pouco sensível.
ResponderEliminarTambém é fundamental conhecermo-nos bem, para melhor e mais disponíveis estarmos para conhecermos o outro. Não sei se concorda.