21.3.12

Saint Barthélemy, 20-03-2012

À nossa frente temos um monte no braço da ilha, mas o monte não se vê. Ele, o céu e o mar estão negros, o que faz as poucas casas com as suas luzes parecerem pequenas naves suspensas. Durante o dia, a paisagem é maravilhosa, com o verde-escuro do monte, o azul-tudo-e-mais-alguma-coisa do mar e bonitos barcos à vela fundeados ao largo da costa. À noite é estranha, como as pessoas de quem o Ja. tanto gosta -- fez-nos rir hoje, quando o capitão se referiu aos hóspedes como «pessoas estranhas»; «eu gosto de pessoas estranhas, fazem-me sentir normal», disse. 

Partimos para Saint Martin na sexta-feira de manhã e, em princípio, ficamos lá três semanas; se os hóspedes não tivessem o avião para apanhar deveríamos ficar, porque no próximo fim-de-semana há uma regata de veleiros clássicos que, dizem, é uma coisa linda de se ver. Eu não percebo nada de barcos, mas quando vejo um bonito há qualquer coisa em mim que se acende. Ainda bem que o gosto não depende do conhecimento e que nos desperta ele, tantas vezes, vontade de conhecimento. Ou de desconhecimento: «não conheço e não gosto» é uma frase útil em certas ocasiões.

A noite passada dormi oito horas, mas não foram suficientes. Estou a escrever há cinco minutos e os meus olhos já se fecharam várias vezes. Sinto-me exausta e um bocado doente. Nunca aguentei bem a falta de sono. Preciso de uma morte diária para me lembrar de como é bom viver.

No entanto, estou satisfeita, mas longe de estar realizada. Nunca me senti tão valorizada profissionalmente como no que agora estou a fazer, tarefas para as quais não tenho qualquer tipo de formação e cuja organização me pede apenas bom senso e algumas pesquisas no Google ("how to set table for buffet", por exemplo). Presumo que para algumas pessoas esta opinião seja chocante, como se fosse a revelação de uma inteligência limitada, de falta de ambição e de uma propensão para a servidão, como um leitor anónimo escreveu aqui no outro dia, comentando que eu não estava a trabalhar na minha área de formação, como se isso fosse uma tragédia para mim e uma vergonha para a minha família (também mencionou a idade de quem amo, como se não houvesse idiotas em todas). A verdade é que precisava de um trabalho assim, que "suspendesse a crítica" e me desse paz de espírito para me lembrar de quem sou. Os rapazes arrotam à mesa e eu repreendo-os -- sou a avozinha --, molho o dedo no creme de chocolate para a sobremesa do jantar e sou repreendida -- sou a neta. 

É preciso alguma humildade para fazer o que eu faço. Penso no tempo que demorei a passar das palavras às acções (desculpa, J.L.Austin, mas o teu How To Do Things With Words não chega, às vezes é preciso fazer coisas sem as palavras por perto, porque elas só nos impedem de fazer o que tem de ser feito) e a aceitar um trabalho mais bem pago com um mês de experiência no ramo do que aqueles que fiz em Portugal, com formação académica adequada e experiência profissional coincidente. Há dois dias sentei-me para almoçar às quatro da tarde e um colega perguntou-me se não tive fome antes; o capitão, meu superior hierárquico em linguagem de terra, disse-lhe que eu estava a fazer de hospedeira e empregada de mesa ao mesmo tempo, dois trabalhos difíceis de conciliar, e que tive fome, sim, mas não comi. No dia seguinte, um dos miúdos pediu-me a 19.ª garrafa de água do dia enquanto eu estava a jantar; quando me levantei para ir ao porão, o capitão ordenou-me que me sentasse e disse ao miúdo «esperas dois minutos que eu vá buscar a água. A Tatiana não se sentou o dia todo e está a tentar comer em paz».

Algumas das pessoas com quem trabalhei antes receberam os meus sacrifícios como se não passassem de obrigações ou manifestações de bom senso -- a ideia de que ter um emprego é um privilégio demoniza o trabalho e promove a cultura da palmadinha nas costas: «estás a fazer um óptimo trabalho, mas eu infelizmente não te posso pagar mais por isso. Mas em breve as coisas vão mudar». Tretas. Quando se trata de trabalho, o dinheiro e/ou um equivalente (cama, comida, roupa lavada) é a única compensação possível, porque as coisas nunca mudam tanto quanto mudariam se fosse feita a nossa vontade.

Tu, por exemplo, ainda estás longe. B. está na água e, depois de uma paragem em Areinha, «ao lado do qual Parnaíba é uma metrópole», ainda precisas de um dia para chegar ao teu destino. Mas eu digo que esse destino é só outra paragem. O teu destino está mais perto de onde estou, mais perto de mim. Gostava de ser eu esse destino, e seria, se não soubesse que na vida e na morte estamos quase sempre sós -- e, se possível, bem acompanhados.

Assim na Terra como no Mar.

3 comentários:

  1. Ámen!
    Não te preocupes com as bocas do trabalho diferente da área de formação. Vem-me logo à retina, aquela cena do filme do Charlie Chaplin em "Tempos Modernos" em que o trabalho dele (Leia-se área de formação) era apertar porcas. Toca a campainha para acabar o turno, ele sai para a rua e continua a apertar tudo o que seja parecido com porcas e parafusos. Eu também fui arquitecto durante 30 anos e agora apanho "caca" de cão para sobreviver, embora não seja a minha área de formação...

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  2. Tantas vezes já me questionei acerca de tudo isso. Talvez seja tempo de encontrar as minhas respostas como tu estás a fazer com as tuas. Obrigada. :)

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  3. Minha linda, fico contente que estejas bem e sobretudo que a tua escolha te esteja a fazer feliz e realizada!
    Admiro a tua coragem em arriscar...no fundo, admiro-te por estares a viver ( e a aprender) ...quando todos estamos a tentar sobreviver...

    Continua a escrever para nós! :)

    Beijinho grande,

    Sandra Fonte

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.