Num gesto simpático, a senhora M. convidou toda a tripulação para jantar no seu último dia a bordo. A sua amiga serviu-me um copo de vinho -- «só um», disse o capitão, que já sabe que ao segundo posso começar a dizer alguns disparates. Nunca tinha bebido um vinho branco tão madeirento, quase parecia tinto, e talvez por isso me sinta tão tonta. Os últimos nove dias foram difíceis e às vezes pergunto-me como os consegui aguentar. Não só o trabalho, mas uma vida tão estúpida, que não é absolutamente nada para além do trabalho. Nos primeiros dias desesperei e dei por mim a pensar que o dinheiro não é tudo. Mas o tudo não precisa de chegar já, pelo que posso passar mais uns meses só a ganhar dinheiro.
Hoje ia batendo em Y. Só não o fiz porque não é meu filho ou meu familiar; se fosse, tê-lo-ia feito sem pensar duas vezes. Tenho dificuldade em lidar com imbecis, tenham eles que idade tiverem -- ainda ontem aqui escrevi o mesmo. Os meus conhecimentos de psicologia infantil são, mais do que limitados, inexistentes, mas tenho tendência para tentar, ao menos, tratar as crianças como mais ou menos inimputáveis. Isso passa por tentar convencer-me de que se a criança é imbecil aos cinco anos, provavelmente a culpa é dos pais, o que é quase sempre o caso.
Y. tirou uma camisola que atirou para o chão do cesto da roupa suja e eu perguntei-lhe se ia vesti-la assim, provavelmente já cheirando mal por estar perto das outras roupas. Começou a fazer uma birra sem fim que culminou em gritos histéricos pela mãe que só estava no quarto ao lado. Y. é um miúdo mimado, filho único, que está habituado a ter tudo quando e como quer, e só diz «por favor» quando o olhamos com desagrado antes de reagir aos seus pedidos. Mas isso, eu que sou grande consigo aguentar. O que me tira do sério é a falta de respeito e solidariedade que tem com os outros miúdos. É egoísta, invejoso e mau para eles. Empurra-os a subir ou a descer escadas, estraga-lhes as brincadeiras e aproxima-se deles docilmente quando quer alguma coisa. É aquilo a que tenho ouvido chamar "criança problemática". Nunca ouvi os pais dizerem-lhe «não» e usam, com ele, uma expressão extraordinária: «private time». «O seu filho está muito calado», observei, «estará a dormir?» «Não», foi a resposta, «ele pediu algum private time». Só me ocorre perguntar: desde quando é que um miúdo de cinco anos tem privacidade? Desde quando é que é considerado normal que um filho único de cinco anos não esteja radiante por ter, finalmente, companhia para brincar? Desde quando se permite a um miúdo que faça um escândalo porque além do bacon que pediu tem no prato salsichas?
Não me interpretem mal. O miúdo tem momentos adoráveis, como todos os miúdos. Ontem perguntei-lhe se sabia ver as horas. Foi ao telefone do pai e disse-mas: 8:34. Mostrei-lhe no relógio de ponteiros da cozinha como se lia, e disse-lhe «aqui está: são 8:34, tal como viste no telemóvel»; três segundos depois gritava-me do salão: «não, não! São 8.35!»
Já aqui escrevi que o Luís inventou, segundo me parece, diários de bordo em que não se precisa de estar a bordo de nada para além de si mesmo -- muitas vezes o tenho lido sabendo-o a pé ou numa bicicleta. No meu caso, só são de bordos porque estou mesmo a bordo. Infelizmente, pouco ou nada tenho para contar acerca destas paragens. Não tenho visto nada para além de paisagens inefáveis, gente rica a viver como pode e gente normal a trabalhar como muitos gostariam de conseguir. Pelos rapazes não sei -- eles têm, ao menos, a vantagem de ir mantendo o bronze --, mas por mim falo: trabalho que me farto.
Amanhã à noite saio, ui se saio, já em Saint Martin. Mas o que queria agora é que estivesses aqui. A ver os mastros de que tanto gostas a cortar a noite na enseada, à entrada de Gustavia. A ver passar os barcos que te dizem tanto, como o Endeavour, tão elegante, ou o Velsheda, que está cá, e onde hoje alguém se magoou a sério. Ou, simplesmente, a ouvir o que, não se ouvindo, nos ensurdece: a beleza esmagadora do que não posso sair para ver, um mundo inteiro lá fora e eu aqui.
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