19.5.12

Redifusão

F. - Breve e fragmentada biografia

Ainda hoje se está para saber se F. tinha aquilo a que, muitos anos mais tarde, se viria a chamar "uma visão integrada do mundo": um conjunto coerente de ideias sobre a luz, o mar, o amor ou, por exemplo, um arco-íris que por vezes via de manhã, redondo e perfeito como a vida de alguns santos, e suspeito (de falsas promessas) como as de algumas putas. Que pensava ele das montanhas verdes e crespas como o cabelo de um negro que lhe enquadravam os dias? Veria uma relação entre elas e o enorme vazio do céu, que hoje está, por exemplo, de um cinzento incolor e sem sombra de sombra como alguns futuros, e muitos passados? Que pensava F. da empregada de bar pequena e empertigada, magra e malcriada a quem um dia oferecera uma cerveja para que "engordasse um bocadinho e se tornasse enfim fodível" (esta história, provavelmente apócrifa ainda hoje percorre os bares da América Central)?

F. tinha opiniões formadas e firmes sobre algumas coisas: as senhoras passam à frente nas portas e atràs nas escadas, por exemplo; um cabo empandeira-se de uma determinada forma e não de outra; vento forte é melhor do que ausência total de vento; mais vale amar do que ser amado ("é mais fácil, ao contrário do que parece, e menos sujeito a erros", explicava).

Apesar disso a dúvida permanece: teria F. uma visão integrada da vida?

Pessoalmente duvido. E se tinha tentava (e conseguia) de tal forma dilui-la numa mistura aleatória de vinho, cerveja, rum, whisky e sexo (em doses extremamente desiguais) que era como se não tivesse.

Quando uma mulher o atraía F. criava, isso está mais do que estabelecido, a ilusão de ter essa tal coisa da visão "integrada". Numa mulher com nome de flor, por exemplo, via um tratado de botânica, um compêndio de metafisica e um manual de química pura; numa outra com nome de rainha via um futuro claro como cristal e um presente negro como um poço num dia de chuva. ("Quando cessará o presente e começara enfim o futuro?", perguntou-se um dia. Para F. presente era o que via do seu cubículo estreito com um pequeno guichet, frente ao qual desfilava o tempo e aquilo a que um jovem jornalista chamou, um dia, "vida". F. vivia na bilheteira de um teatro, e nenhum jovem jornalista resiste a um bom cliché).

As diferentes vidas de F. - nao me refiro às diferentes componentes da sua vida, refiro-me às suas diferentes vidas (por exemplo: social, afectiva, profissional) - eram, ou pareciam, caóticas, complexas, fragmentadas. Terá ele conseguido integrá-las, ele que tanto desejava dar-lhes uma unidade coerente, sólida, direita como o mastro de uma embarcação de vela ou o membro erecto de um homem?

Ainda hoje não se sabe. F. nutria pelas mulheres um amor constante e uma atracção irregular; vivia por vezes na paisagem e doutras não se apercebia sequer da existência de um mundo exterior; um dos seus magnéticos sorrisos tanto podia ser dirigido à pessoa com quem falava como a uma longínqua memória que lhe tivesse aflorado a mente.

F. morreu ontem. Não deixou nada escrito; e como nos últimos meses se recusou a dirigir a palavra a quem quer que fosse - uma pedra no caminho arrancava-lhe mais palavras do que a presença dedicada da sua irmã, que vagamente entrevia (e claramente ouvia) à cabeceira da cama; dos seus colegas e inúmeros amigos - tão pouco se lhe recorda uma afirmação, uma opinião, uma pergunta, uma dúvida.

Sabe-se que F. integrava em duas categorias distintas as mulheres magras com grandes seios e as gordas com eles pequenos, como se não fossem da mesma espécie (o que apesar de tudo lhes conferia uma certa unidade, um eixo comum horizontal - as mamas - e outro vertical: o desejo, de passagem se diga). Conheciam-se ainda de F. as opiniões sobre o vento ideal - superior a quinze nós e inferior a trinta e cinco; o mar - deve ser mais quente e mais azul do que o ar; as nuvens - "cumulus bom, tudo o resto mau", sintetizava. Sabemos igualmente que preferia as mulheres de olhos abertos às que os usam fechados, mas ainda não sabemos a que chamava "olhos abertos".

Nutria bastantes dúvidas sobre a capacidade desalterante da água; gostava de ler (mas passava por vezes meses seguidos sem tocar num livro, para logo de seguida ler quatro por semana).

Como unificar tudo isto?

As dezenas de biográfos de F. (um grupo heterogéneo que incluía as mulheres, os primos, os irmãos, alguns amigos e quase todos os inimigos) tinham opiniões divergentes.

F. escrevia e por vezes falava na rádio ou na televisão, mas tentava economizar o que dizia. "Só há duas coisas que merecem e devem ser poupadas, porque são os únicos luxos: a água doce e as palavras". Percebia claramente a relação entre o sexo e o aparecimento posterior de crianças ou chatices. Ou entre o vento e o movimento de alguns corpos; entre o som e o movimento de outros; mas teria por exemplo percebido a relação entre o vento, o som e o amor? Nada é menos seguro: era pouco dado a pensamentos complexos, não se sabe se por gosto se por incapacidade.

E que pensava ele da relação, hoje estabelecida como inevitável, entre o desejo, o acto sexual e o amor? Não sabemos. Tão pouco sabemos se reconhecia o fastio como um dos possíveis motores do desejo.

F. morreu jovem, pouco mais de cinquenta anos. Mas teria tido tempo de deixar obra: uma biografia, um panegírico, uma explicação, uma visão, uma (ou várias) listas.

Não deixou.

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