20.4.14

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 20-04-2014

Para se trabalhar em manutenção e reparação de veleiros o ideal é ter-se geometria variável, como alguns aviões: ser-se ora pequeno ora grande, leve, pesado, flexível ou obstinado. A única qualidade sempre necessária é a agilidade.

Por exemplo: agilidade de gazela num corpo de elefante funciona; agilidade de elefante num corpo de gazela não.

Não tenho o corpo da gazela, não sou ágil (apesar de haver pessoas que pensam que o sou) e, pior, não gosto particularmente de fazer manutenção e reparações em veleiros, sejam eles meus ou de terceiros.

Não é portanto difícil de perceber porque chego ao fim de um dia de trabalho tão cansado e tão feliz: apesar de todos os handicaps os dias correm bem, rápidos, ligeiros. E acabam mal começam.

Até a lua anda depressa. Ontem estava cheia, hoje estamos a dois dias do quarto minguante.

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Flexibilidade - programa de hoje:

1 - Acabar a instalação de uma bomba de fundo manual. Está num armário no qual só consigo pôr um braço de cada vez. Para pôr os tubos - era o que faltava fazer - consegui enfiar os dois braços e uma lanterna lá dentro. E teflon e apertar as abraçadeiras e fazer uma emenda porque um dos tubos era demasiado pequeno (o anterior armador do T. era americano, mas devia ter sangue francês: é tudo ao desenrasca).

2 - Instalar um piloto automático de reserva. É relativamente fácil, mas depois dos tubos o meu cérebro recusou-se a funcionar, pelo que o trabalho se arrastou e arrastou e arrastou; até que à tarde chegou a vez de passar os cabos eléctricos. Mais uma qualidade necessária: ter visão de raios-X. Ou pelo menos não ser míope, não ter os óculos cobertos de suor e lembrar-me de que a porcaria que cai nos olhos vinda da coluna do leme sairá facilmente (pensar em Antigua, quando me magoei seriamente num olho e dois dias depois estava bom - "os olhos são os orgãos que se curam mais depressa. Expulsam tudo o que lhes é estranho num instante", disse-me R.)

3 - Colocar a porta de visita num tanque de água. Oito parafusos. Levei uma hora: meia para os primeiros seis, meia para os dois últimos. Mãos pequenas e dedos de pianista; ou vampiro. Ou dedos magnéticos (se bem com aço inox não sei para que serviria o magnetismo, mas enfim. Isso é outra história).

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A dor de dentes desapareceu quase por completo. Não sou religioso, mas a água oxigenada devia fazer parte de um panteão qualquer. Se calhar faz e eu não sei.

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Os armadores propuseram-me ir com eles para o Equador. Tenho a impressão de que vou aceitar, apesar de eles não me poderem pagar um salário normal. Nunca estive no Equador, e com um bocado de sorte farei massa suficiente para ir para o Mediterrâneo depois. E já me estão a falar em supervisionar o refit no México.

O México é um país que me atrai há muito tempo. E ainda há quem diga que eu sou instável.

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Os dias acabam sempre da mesma forma: um duche, umas cervejas no KARL ou no bar da Marina, meia dúzia de dedos de conversa com a Nike ou com o T., por vezes um mergulho na piscina. A fatiga desce para os pés, lenta mas sensivelmente. E depois sai, desaparece, evapora-se. Não a vejo mais até ao dia seguinte.

Gosto de sentir o cansaço mover-se pelo corpo muito mais depressa do que entrou, expulso pela cerveja e pelo prazer.

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