16.5.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 16-05-2015

O dia está cinzento, todo ele: o vento, os verdes - são muitos - da água, a música do restaurante, que é uma merda. Tento ouvir o Vasco Abranches, mas não chega para abafar o ruído. Na água há dois kitesurfers. São a única cor nesta tarde chata, longa, melancólica.

Os kites voam, saltam, andam a uma velocidade alucinante. Tenho de aprender a andar naquilo. Em S. Luís estive quase, mas acabei por trocar por uma viagem a Lisboa.

Penso num verso do José Anjos que li hoje: "Foste um gesto que ficou na boca, à espera de se fazer palavra. Calei-me.
E ele fugiu por um beijo."

Bonito, não é? Um gesto que quer ser palavra e não é, um beijo que ajuda a fugir... Blake: "He who desires but acts not breeds pestilence". Mas fugir é agir, calar-se também. Isto é, o silêncio pode ser uma forma de acção: ajuda os gestos a fugir, transforma-se em beijos. Gesto quase falado.

O vento está angustioso, diz Don Adolfo, o senhor que nos faz o transporte de panga para a terra. É um senhor. Pontual, educado, sem uma palavra a mais ou a menos. Sem um gesto, talvez.

Não comprei headphones daqueles que abafam o ruído ambiente porque os acho exagerados, histéricos; agora lamento. Devia estar a ouvir o Vasco, a música dele acompanharia bem o cinzento do dia, os saltos dos kites, os versos do José Anjos e esta melancolia que morde por dentro.

Estou cansado, essa é que é essa; malabarista da incerteza. Fazer malabarismos com a incerteza. Blake outra vez:

"1. Man has no Body distinct from his Soul for that call'd Body is a portion of Soul discern'd by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age
2. Energy is the only life and is from the Body and Reason is the bound or outward circumference of Energy.
3. Energy is Eternal Delight
"

Energy is eternal delight. And the lack thereof?

Há muita gente na praia. O dia está cinzento mas não frio. Deviam proibir as televisões nos bares. Proíbem tantas coisas, mais uma menos uma nem se notava. Podiam proibir, sei lá, a má música, por exemplo, os gestos inacabados, as palavras vagabundas, desnorteadas, perdidas e incapazes de se escapar por um beijo como se os beijos fossem uma escada de incêndio, uma escada Magirus para a vida. Não são. Sirenes. Fogo. D. H. Lawrence sabia de incêndios. "Be still when you have nothing to say; when genuine passion moves you, say what you've got to say, and say it hot."

Fazer malabarismos com os incêndios. Não ateies incêndios que não podes apagar. Ninguém pode ser leal com outrém se não o for antes consigo próprio.

O sol põe-se; o dia fica menos cinzento. Deve ser porque estou com fome. Deixa o gesto agarrar o beijo; não o deixes fugir. Não deixes nada fugir: o vento não leva, traz.

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