Fui à Lello. Já lá não entrava há duzentos e cinquenta anos, mais coisa menos coisa. A minha memória é fraca (em todos os sentidos que o adjectivo pode ter quando aplicado à memória, uma coisa já de si falível e duvidosa) mas desta vez funcionou. Lembrava-me de uma livraria muito bonita e má e reencontrei exactamente isso: uma merda de uma livraria linda como tudo.
Queria um livro de Marguerite Duras em francês. Um qualquer. No outro dia sonhei que preciso de ler tudo dela, tudo: reler o que li e ler o que não. Como o hotel que generosa e modicamente me acolhe é perto fui à Lello. Paguei os três euros de entrada - medida que me parece sensata e ao que parece resultou - e pedi a um jovem barbudo (isto agora é uma redundância, estúpida moda) o que tinham de Marguerite Duras em francês. Têm um título, um, e para estudantes.
Comprei-o, mais um Hammett e um Spillane em português. Onze euros e quarenta os três. O Duras vou guardar, provavelmente, mas os outros posso deixar para a troca. Gosto de deixar livros portugueses nas trocas de livros. Uma vez deixei um sobre o rio Parnaíba na Martinique, no Marin e desapareceu logo a seguir. Uma senhora brasileira, aposto. Pelo menos parecia.
Enfim, não nos dispersemos. Os sonhos são importantes na minha família. A minha Avó iniciou uma carreira na cozinha por causa de um sonho. É verdade, uma verdade histórica (história familiar, entenda-se). Ela não sabia fazer nada, era uma senhora rica que de repente enviuvou. Detestava a sogra, sentimento que a sogra retribuía, não sei se em proporções iguais se não. Para não depender dela (sogra) a minha Avó saíu de casa - propriedade dela (sogra) - e foi para casa de uns amigos pensar no que ia fazer. Um dia num sonho apareceu-lhe Santo António, que lhe disse:
- Filipa, o teu futuro é a cozinha.
A minha Avó comprou um livro de cozinha francês - ela tinha tido um cozinheiro francês até aos dezoito anos, ou coisa que o valha, quando o pai ficou arruinado - e aprendeu a cozinhar. Quando achou que sabia - os provadores eram os empregados da quinta para onde tinha ido - comprou um carro de bois e foi vender bolos para a praia da Nazaré. Até morrer a Senhora chamava ao Santo António "o meu sócio".
Tal é o poder dos sonhos na minha família. Eu sonhei que preciso de ler a Duras toda e vou ler. Talvez acabe a vender livros numa praia francesa, quem sabe.
Devo dizer que hesitei: La Douleur é um dos raros livros de Duras que li e de que não gostei. Mas um sonho é um sonho e a um sonho obedece-se. Ainda por cima este volume é uma edição para estudantes, vem com aparelho crítico ("Texte intégral + dossier par Marie-Sophie Doudet", diz na capa). Não sei quem é a marie-Sophie mas tenho confiança nela. De qualquer forma raramente leio os dossiers. Não sou crítico literário nem estudante universitário.
Pouco importa. Agora bebo cervejas no café ao lado do hotel. Vou deitar-me cedo. Fui almoçar ao Buraco, na rua do Bolhão nº 95. É um restaurante que aconselho a quem tiver insónias. Comi rojões e queijo da serra e bebi vinho tinto, vinho do Porto e vinho branco (este para acompanhar umas petingas fritas que um amigo tardio encomendou). Já dormi uma sesta, bebi um rum, dois enos e três cervejas e ainda estou cheio - de comida e de sono -. Daqui a pouco vou deitar-me e dormir, inch'Allah.
Se não dormir não faz mal: tenho dois bons policiais e um Duras do qual não gostei quando li a primeira vez.
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A noite está boa, nem fria nem quente; e o Porto bonito. Aquela anedota do concurso - o primeiro prémio era uma semana no Porto com todas as despesas pagas. O segundo duas semanas em idênticas condições - já não funciona. Parece que a Europa chegou aqui, finalmente. Enfim, não parece: a Europa conseguiu finalmente entrar no Porto. O cerco acabou e quem ganhou foi a cidade, outra vez.
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Amanhã vou para a Coruña. levar um barco para Copenhaguen. Depois é possível que vá à Grécia buscar um para Marselha. Estou à espera da confirmação. Copenhaguen, Grécia, Marselha, Panamá, St. Martin, em barcos bons e pago normalmente. Isto é atacar abaixo da cintura um pobre desgraçado que quer parar.
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Recuperei o meu computador, finalmente. Agora tenho de passar horas a repô-lo como estava. Não sei quando vai ser, mas sei quando não vai ser: hoje. Cada vez detesto mais mexer em computadores e invejo os dias que passei a fazê-lo: o prazer que tinha a descobrir estas porcarias é simétrico do que sinto quando não faço nada, ou do que me chateio quando não posso fugir.
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