22.5.16

Diário de Bordos - Cabo San Lucas, Baja California Sur, México, 21-05-2016

Em Quelimane havia um tipo que cantava num bar. Não me lembro do nome dele. Cada vez que oiço Only You lembro-me do homem. Tinha uns óculos redondos numa cara redonda, era mulato e puxava a canção a alturas inexcedíveis. Creio que se chamava Negrão, mas não tenho a certeza. Era mulato. Tenho pena de não me lembrar do nome do bar.

Agora oiço Only You num bar chamado 101 Kruda, em Cabo (San Lucas. Dizer o nome completo é um pleonasmo em certos meios).

Deve haver poucas semelhanças entre uma cidadezinha colonial portuguesa de final dos anos sessenta, princípios dos setenta e uma cidade turística mexicana do século XXI. As cores, talvez. O azul do céu, que a humidade faz mais claro do que deveria ser. A solidão de um então puto e hoje quase velho que gosta de uma canção e das memórias que ela lhe traz, de estar sozinho num café a olhar para a rua a pensar no que vai fazer a seguir, de ver as pessoas viver como se ele não fosse igualmente parte dessa vida.

O bar 101 Kruda fica perto do hostel onde durmo, "o mais barato da cidade". Vim aqui parar porque procurava um bar onde não fosse "invadido por americanos" e perguntei a um senhor que por acaso era também dono do dito bar. Descobri-o depois. Além do bar o senhor tem uma loja na qual me vende cigarros avulso.

A esta hora as ruas estão vazias. Os turistas devem estar em casa a lavar-se da praia e a preparar-se para a "noite".  O bar é barulhento por causa do tráfico contínuo, incessante.

Não há muito que ver, no fundo. O Only You acabou há muito tempo - escrever no telefone tem esta vantagem: meia dúzia de patacoadas levam um tempo desproporcional a escrever e abrandam o ritmo de consumo da cerveja -.

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As probabilidades de encontrar um embarque são poucas. A marina não permite dockwalk e os anúncios que deixei na recepção têm sido pouco solicitados, disse-me hoje a recepcionista. Passo lá duas vezes por dia: é importante que ela me veja e se lembre de mim. Imagino-me no avião, a desembarcar na Portela (agora Humberto Delgado. A palermice não tem limites), apanhar o metro e entrar noutra vida.

Foi assim que cheguei a Londres, em Janeiro de 2000, ao Brasil em 2010 e a tantos outros sítios antes. Uma das vantagens de mudar de vida é que elas começam sempre bem. A desvantagem é acabarem mal. Paciência. "É o que há", como me dizia hoje V., cujas vidas começam e acabam bem.

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Glenn Gould vivia fechado em casa, cortinas fechadas. E havia aqueles dois irmãos que fizeram um labirinto de jornais em casa, um morreu e o outro também, era surdo e cego, o livro é uma beleza. Chama-se Homer and Langley. A história é trágica e linda ao mesmo tempo. Dois irmãos fechados numa casa com um automóvel e um labirinto de jornais e no fim do labirinto está a morte.

Por vezes penso nisso: fechar-me num ovo até morrer; cortinas fechadas, jornais livros e música, escuridão. Não funciona: a minha é uma solidão de exteriores. Sempre foi. Desde que em Quelimane ouvia um jovem cantar Only You como se tivesse sido ele a compor a música.

Talvez seja por isso que gosto tanto de estar no mar: uma casa do tamanho do mundo, cortinas abertas, ora clara ora escura, "uma linguagem antiga que não sei decifrar", dizia Borges (cito em segunda mão).

Agora vou deixar o mar. Mishima escreveu um livro fabuloso chamado "O marinheiro que perdeu as graças do mar". Era um dos meus favoritos dele, mas não o releio há muito tempo. (Tenho tantas coisas para reler...) A personagem de Mishima teve uma morte horrível.

Não se muda de vida para morrer. Muda-se para viver outra vez. Para ressuscitar.

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