26.12.16

O mastro

Foi assim que as coisas se passaram. É importante começar por aqui: foi assim que tudo aconteceu, sem tirar nem pôr. As coisas acontecem porque sim e não porque nós queremos que elas aconteçam. Tudo isto aconteceu há muitos anos, ainda eu era vivo. Lembro-me do princípio, do meio e do fim, que seriam os pilares da história se o que aconteceu começasse e acabasse, se tivesse paredes a separar os quartos das salas, a casa da rua, a história do tempo. Não tem. Nada começa nem acaba. Partículas, fragmentos, migalhas, pó, espuma, fotões reflectidos nos retrovisores de automóveis que se deslocam velozes sem que saibamos de onde vêm ou para onde vão.

Houve um acidente qualquer na Bélgica. O Ministro da Cultura belga convidou-me para fazer um monumento à memória do dito incidente (sou escultor). Não sei por que raio de carga de água o homem se lembrou de mim. Tinha-o cruzado um dia na exposição de um amigo e fomos "amigos" durante uns tempos. Depois cada um foi para seu lado e de amigos com aspas passámos a "conhecidos" e daí, suponho, a "sim, sei quem ele é".

Um dia recebi um mail dele, agora era ministro e queria uma peça minha para marcar o dito incidente. Disse-lhe que sim. Estava de novo em período de penumbra financeira, à beira da escuridão total. A falta de dinheiro tem consequências em todos os aspectos da vida de um homem, incluindo o vocabulário: a palavra "não" desaparece.

Disse-me que precisava de ir à Bélgica dar uma volta pelo país, "senti-lo", "impregnar-me". Teria um carro e um chauffeur à espera no aeroporto. Tinha as duas primeiras noites reservadas num hotel em Bruxelas; as outras seriam marcadas em função do local onde me encontrasse.

O chauffeur chamava-se Ferdinand, era Flamengo e odiava Wallons.

- Fui dizer ao meu pai que me ia casar - contou-me logo na primeira tarde.
- Óptimo - respondeu. - Com quem?
- Ah, pois, Pai, era isso que te queria dizer...
- Então diz.
- É que ela é Muçulmana.
- Muito bem. Se fosse Wallone era pior.

E ria-se a bandeiras soltas na ventania.

Gosto da Bélgica. Tem aquela cidade cheia de canais, comboios que vão para Antuérpia depois do Natal e da esperança, cerveja demasiado doce, ódio profundo às crianças, um governo que às vezes governa e a maioria do tempo faz que governa. Três línguas oficiais num país em que ninguém se entende e restaurantes japoneses baratos, coisa que eu desconhecia até ir a Bruxelas pela primeira vez.

Passei uma semana a percorrê-la com o Ferdinand, cujas vida e piadas deixaram de me interessar demasiado depressa para o gosto dele e demasiado tarde para a minha paciência. A secretária do Ministro tratava das reservas com uma eficácia e um silêncio apreciáveis.

A Bélgica é um país plano, horizontal, cinzento mas honesto: toda a gente concorda que é uma ficção mas continua a vivê-la e o país lá vai sobrevivendo, virado para fora por manifesta incapacidade de olhar para dentro. Ou falta de vontade, mais provavelmente. Um dia na Wallónia passei por um campo no meio do qual vi um tufo de vegetação. O campo estava deserto. Era inverno, mas não havia neve. Uma longa extensão monocromática, plana no meio da qual sobressaía um tufo de canas. Pedi a Ferdinand para parar.

O caniçal rodeava uma estrutura que ao longe não percebi bem o que era. Inicialmente hesitei entre um poço ou a base para uma coisa qualquer que a desolação do lugar há muito levara. Era um poço, um buraco. Um buraco é um lugar de passagem. Os buracos nas solas dos meus sapatos são o lugar de passagem para a água da rua quando chove, por exemplo. É por um buraco que a luz entra e ilumina o que está escuro, que espreitamos quando queremos saber o que se passa do outro lado da porta. Decidi ali que a minha forma de celebrar o tal acontecimento seria fazer um mastro e plantá-lo naquele poço. Um mastro gigantesco, em fibra de vidro, um mastro que nunca mais acabasse, um mastro que saísse do que estava escondido, uma vertical no meio do nada.

- Um mastro no meio do nada - disse ao ministro quando lhe fui apresentar a ideia. - Uma vertical num país horizontal. Um marco (ia acrescentar "num país sem marcas" mas calei-me a tempo).

Fez uma série de perguntas técnicas: como ia aguentar o mastro, quanto tempo duraria, em que material seria feito, se tinha uma ideia dos custos e dos prazos e por aí fora. Respondi como pude. Os dados mais precisos ser-lhe-iam enviados quando os tivesse.

O homem disse que sim, que gostava da ideia, queria assinalar o incidente e um mastro alto, enorme seria uma boa maneira de o fazer.

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Construiu-se o mastro. Houve uma série de problemas técnicos a resolver: estaiá-lo, pôr uma luz encarnada no topo não fossem um avião ou um helicóptero abalroá-lo. Um mastro demasiado rígido parte-se, demasiado flexível dobra-se; pode-se estaiá-lo parcialmente a si próprio, o que lhe permite ser mais fino e leve, ou só à terra; pode ser feito de madeira, alumínio, fibra de vidro, carbono, ferro, aço, cimento. Propus carbono: é leve, resistente, pode pintar-se ou não (se não se pintar fica negro, um negro brilhante, denso, intrigante).

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A inauguração foi uma festa. Veio o ministro e metade do Governo, representantes de tudo e mais alguma coisa incluindo provavelmente a sociedade protectora dos animais e a associação dos lunáticos anónimos. Veio uma fanfarra, uma senhora velhinha falou da importância simbólica dos mastros, o ministro felicitou-me pela ideia e a si próprio pela ideia de ter tido a ideia. Correu tudo bem, a festa foi bonita, fui apalpado por um paneleiro que se dizia amigo das artes e por uma loira que às artes preferia os artistas. Bebi de mais, acordei no dia seguinte com a loira ao meu lado, fui tomar o pequeno-almoço sozinho e quando voltei ao quarto a senhora perguntou-me se a podia foder outra vez porque já não se lembrava de como tinha sido a foda de ontem.

O avião era às três da tarde.

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Pouco tempo depois o mastro caiu, mas o ministro já não era ministro e ninguém deu pela queda. Excepto a loira; escreveu-me a dizer ou que o mastro era melhor do que eu ou eu melhor do que o mastro, não me lembro bem. Morri e deixei de me interessar por metafísica. Agora só os grandes eixos da vida (ou da morte) me atraem. Saber, por exemplo, se a loira ainda é viva e se pode vir ter comigo esta noite, se um dia de sol vale uma noite de lua cheia, se é melhor um rum ou dois copos de vinho tinto. Ao contrário do que se pensa a morte é uma sequência de curtos prazos.

O céu não é bem azul. Está quase cinzento. Azul acinzentado (o azul é a cor dominante. Se fosse o cinzento diria cinzento azulado. É com estas coisas que me preocupo agora. Eixos estruturais.

Banalidades estruturantes. Sem elas a morte desfazer-se-ia, seria insuportável).

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