16.6.17

Coisas de luz

Estávamos a falar do dia, da noite e da luz e eu disse-lhe "espera, luz é de dia " e ela respondeu "não. Luz é sempre".

Bateu na mesa como se me quisesse dar um murro.

"Quando tu falas de amor não te referes só a uma parte dele, pois não? De Arvo Pärt, Hildegarde, Miles a uma parte da música?

É preciso falar da luz. Toda. A da noite e a do dia. Começar com as Vésperas de Rachmaninov, com a Ressurreição de Mahler, com a luz difusa da porta do Tabernáculo,  com a luz daquela pele que te deseja.

Começa pela luz. Começa por Pärt. Começa por ti nessa pele, no mercado de Ver-o-Peso, na luz glacial, branca e quase invisível do extremo-Oriente russo. Começa pela luz densa do olhar de uma rapariga de dezanove amos que te ama. Aos dezanove anos tudo é denso, da luz ao desejo. Imagina-te na neve. "Qual a diferença entre imaginar e recordar?"

Nenhuma, estúpido. A imaginação é a memória do que ainda não aconteceu. A memória é o que poderia ter acontecido, imaginado hoje à luz deste fim de dia esvaído. Pärt, Hildegarde no abominável som do telefone.

Literatura, muita. Pensa assim: um dia vais querer a pele que te quer. Aliás: um dia vais querer a pele que queres. Não: tens. Tira os dois pontos e a confusão será total. Querer e ter são coisas diferentes, sabe-lo desde os dois anos de idade. Qual confusão?

- Estás a confundir memória e imaginação.
- E tu pele e desejo.

Há cidades nas quais a luz tem a forma de uma serpente gigante que a envolve sem ela (a cidade) saber.

Noutras, como Lisboa a luz parece-se com um pote de mel que alguém  (provável mas não seguramente chamado Leonard) entorna com um sorriso nos lábios.

O mel chama-se "Ausência". Ao fim de muitos anos é enjoativo, mas deixa a cidade entregar-se-lhe e vais ver como fica: limão.

(Dizia o ceguinho, entre parênteses).

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