3.6.17

Diário de Bordos - Ao largo da Sicília, Itália, de 26-05 a 03-06-2017

Quatro ou cinco dias de mar vêm mesmo a calhar. Com sorte chego a Reggio sem parar antes, vejo o meu amigo Salverio e três ou quatro dias depois estou em Atenas. Dia oito, digamos. Oito dias de atraso sobre o programa.

Podia ser pior.

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Dez nós pela popa. Vamos a motor, claro. As instruções e as vontades são para chegar depressa.

Amanhã teremos a mesma coisa mas pela amura. Pode ser que dê para navegar. Estamos a dois dias da Sardenha, três da Sicilia e quatro da Calábria. Não é precisa muita sorte para chegarmos a Reggio sem parar antes. Só um niquinho e como não a temos tido até agora é possivel que não borregue.

O tempo está chato, encoberto, nem frio nem quente antes pelo contrário. Onde está o Mediterrâneo da minha infância? Em lado nenhum: a primeira vez que o vi e nele naveguei tinha vinte anos.

Cruzei-o primeiro de Sul para Norte (do Suez para o Bósforo a caminho da Rússia) e depois de Leste para Oeste (do Bósforo para Gibraltar, a caminho de New Orleans).

Até conhecer e amar Palma nunca fui grande fã deste mar. Agora sou. Aprecio-lhe a história e estou-me nas tintas para os caprichos.

Dia de pão e de cozinha. Guisado de frango temperado com temperos, grão cozido e pimentos confitos em azeite.

Não tenho a certeza dos resultados. Estou com o período.

[Não foram maus].

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Entrou Sudoeste, quinze nós. Vocês não sei. Parei os motores e vamos a fazer sete de VMG (que por sinal é o mesmo que o SOG. A fórmula da felicidade de um marinheiro: VMG = SOG > 0)

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A receita do frango foi uma vivência que partiu da confluência de dois desejos: comer grão-de-bico e acabar com uns pimentos confitos que tinha na cozinha há mais de dois dias.

Dessa confluência  (já não conseguia vivenciar o raio dos pimentos numa panela em cima do fogão) nasceu a ideia de os misturar aos dois. Comecei por temperar a galinha com alho, cominhos, ervas de Provence, sal e pimenta (o limão ficou em Aguadulce, na loja, coitado). Mais tarde, muito mais tarde refoguei duas cebolas grandes cortadas em rodelas numa parte do azeite que usei para confitar os pimentos. Depois ainda nesse azeite fiz o mesmo à galinha. Juntei um solitário tomate, o grão, cobri com água e deixei cozer.

A galinha era velha e levou muito tempo até dar o braço a torcer, mas valeu a pena a espera.

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O Leste entrou ligeiramente mais cedo do que devia, mas ainda está fraquinho e não nos atrasa. A noite está fria, a Lua em crescente meio tapada por cirrostratos, como se estivesse de negligé ou camisa de noite. Os motores trabalham correctamente. Não há tráfego. A visibilidade está boa, ao contrário de ontem. Bebi um café,  enrolei a eugénia, daqui a uma hora o meu quarto acaba e vou dormir. Se fosse preciso fazer uma descrição  de calma seria isto. Sábado chegamos a Reggio e terça ou quarta a Kalamaki. Mais dois ou três dias e estou em Lisboa.

Tudo é tão simples, não é? Quem se lembra da merda de travessia, dos dias passados em portos à espera de vento, das avarias? Um bom dia vale dez maus; uma noite destas uma vida, ou quase. Quase: ligeiramente faltam-lhe menos frio e mais vento para ré da amura.

(Se bem o frio seja apenas o suficiente para me dar mais gozo quando chegar à cama. Não chega para me enregelar).

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"Assim gosto de navegar", diz-me K., que tem o sentido das evidências. "Assim toda a gente gosta de navegar, K" respondo, que o tenho também mai-lo do exagero. Mas para teres um dia assim precisas de dez dos outros. É a tarifa. Um dia bom para dez normais. E ficas a ganhar, acredita: um dia bom vale muito mais do que semana e meia dos outros. Vale para aí uma vida; ou pelo menos meia, que as há outras.

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Curiosamente no mar não há solidão.   Desaparece como a esteira - ou com ela -.
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Dissonância cognitiva marítima: mar e carneirada de Sul, vento Leste.

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Alguém me incluiu no grupo "vento Leste",  como aquelas pessoas que nos incluem num grupo do Facebook sem que lhes tenhamos pedido nada.

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De certa forma lamento as pessoas que não conseguem estar no mar sem ouvir música ou ver filmes.

Tal como, suponho, essas pessoas me lamentam por me satisfazer com o que vejo e oiço quando olho em torno de mim.

Compreendo-os: o mar é viciante. (Além de que poderiam acusar-me de passar muito tempo a ler e não há grande diferença. Mas há, claro. Ler livros é diferente de ver filmes, sobretudo no que respeita ao barulho).

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Paramos para bancas antes de Reggio. Questão de brio profissional, ingenuidade da qual não consigo desprender-me.

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