18.1.18

Labirinto

Imaginemos por exemplo um palácio dentro do qual uma pessoa erra, perdida. O palácio está debaixo de água, mas o ser errante que o habita não sabe. Há muito que toda a gente o abandonou; ele dedica-se a construir um labirinto com as conchas que as marés lhe vão depositando, uma a uma (por vezes duas a duas) à porta. São conchas minúsculas mas o homem - sabemos que é um homem de meia idade, alto, magro, curvado - é persistente.

Talvez não seja persistente: talvez lhe falte simplesmente imaginação. Ou talvez seja prisioneiro da ideia de labirinto, tão prisioneiro que não se apercebe sequer de que não há labirinto nenhum.

"Ainda", diria o homem se nos ouvisse dizer isto. "Ainda não há labirinto nenhum".

O homem está preso dentro de um palácio, debaixo de água, num labirinto inexistente (por enquanto). Constrói-o sozinho, uma concha por dia, às vezes duas. Aprecia a solidão: em tempos teve uma família, amigos, uma mulher, colegas de trabalho; foi-se despindo deles, tirando-os como se fossem peças de roupa desadequadas à estação. Em tempos lera um livro sobre dois irmãos que se encerraram num palácio num labirinto de jornais e morreram, muito devagar, cada um do seu lado da casa.

Lembra-se vagamente de ter tido, ele também, um irmão. Agora não tem e o labirinto é de conchas e não de jornais, conchas redondas, estriadas, feitas para se encaixarem umas nas outras sem se queixarem, sem caírem ou escorregarem, feitas para durar e não deixar passar nem um fio de luz nem uma gota de água e assim fazer do labirinto uma tomba seca e escura ocupada somente por ele, ele e a sua persistência, ele e a sua falta de imaginação, um labirinto eterno no qual nunca ninguém o descobriria mesmo que alguém o viesse um dia a procurar, hipótese essa demasiado remota para que a considere sequer uma hipótese, não passa de um grupo de palavras alinhavadas e sem qualquer contacto com a realidade, essa realidade de que o homem sempre fugiu e na qual quer agora morrer só, seco, é tudo o que quer e para isso constrói, peça a peça, um labirinto debaixo de água dentro do palácio onde um dia por acaso entrou, não sabe se sozinho se acompanhado por um dos seus amigos ou se calhar pela sua mulher ou o seu irmão.

Não sabe: foi há muito tempo e o tempo é um ácido, corrói tudo, até os ossos, a amizade, a família, a retórica, a esperança (passe o pleonasmo: a esperança é apenas uma das variantes da retórica, a mais infantil e inútil, de resto), a memória, a vida, se é que alguma vez esteve vivo.

O homem não sabe nem quer saber. Vive para o seu labirinto e secretamente para esquecer a razão pela qual o constrói. 

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