5.3.18

Diário de Bordos - Lisboa, 05-03-2018

Se tivesse juízo leria mais umas páginas do Calasso. "Zeus passou metade de uma noite de amor com Leda, deixando a outra metade para o marido, Tíndaro."

Mas não tenho. Acabo de ler um conto de Flaubert que me deixou completamente de lado, submerso, vencido (chama-se Un Coeur Simple, caso estejam interessados. É uma viagem extremamente concisa pelas diversas formas da maldade e da infelicidade e acaba com uma imagem de uma beleza avassaladora. Num conto do O'Henry que li há meia dúzia de séculos um arrombador de cofres lima as unhas para ter mais sensibilidade nos dedos. No Coeur Simple temos as unhas limadas desde para aí o segundo parágrafo e a cada linha os cortes aumentam, a cada linha a lima avança.

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Entretanto o inverno continua, as dores no cotovelo também - mas tudo mudou. "Un seul être vous manque et tout est dépeuplé ", escreveu Lamartine porque a sua amante o trocara por uma pneumonia fatal; un seul espoir apparaît et le monde se peuple, poderia escrever eu, se tivesse jeito. Não tenho. Mas quem tem, depois de ler aquilo? Ninguém e isso não os impediu de escrever.

Há até quem tenha menos jeito ainda do que eu e não páre de escrever.

Que inveja!...

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A malta anti-caça ou anti-tourada não percebe um facto simples: não se caça para matar; não se toureia para fazer sofrer o bicho (que de resto devia ser morto logo, como em Espanha). É o contrário: o animal morre porque se caça.

Estou numa espécie de caça em várias frentes; mas uma caçada que faz viver e não morrer. Não caço para viver; vivo porque há uma pista à minha frente e no fim dessa pista uma luz e no fim dessa luz uma esperança e no fim dessa esperança... Nada. A esperança não acaba.

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Conversas do jantar: Cláudia Sampaio, uma das minhas poetisas favoritas na nova poesia portuguesa  (a outra sendo Miguel Martins, já que perguntam); Tournier; Flaubert; a tradução e o trabalho do tradutor e porque são em Portugal as traduções tão más; Heinrich Böll; Werther; e o jantar ele mesmo, trutas à Minhota pela primeira vez feitas no forno em vez da habitual fritura. E outros. Fica uma indelével vontade de reler algumas páginas de Böll, beber uma cerveja (ou um Schnapps, dada a hora), ir a Berlim beber um copo à Literaturhaus.

E sobretudo de recuperar o tempo que perdi longe de tudo isto, dos meus livros, de algumas coisas de que tanto gosto. De escrever.

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O inverno continua, mas tudo mudou. Não é preciso ver muito longe para me aperceber disso. Basta-me ser capaz de ver para dentro, ver no escuro.

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