- E se fosses brincar com o caralho do teu marido em vez de brincares com os meus sentimentos? - Não deve haver muitas relações a começar assim. A minha com o Yuri começou.
É pedreiro; faz obras em casa das pessoas. Quer deitar uma parede abaixo? Aumentar a cozinha? Descobrir o que a prende ao seu marido (ou agora se desprende)? Cimentar o seu casamento? Deitá-lo abaixo de uma vez por todas? Chame o Yuri. Ele trata de tudo. Não fala muito bem português, ainda; por vezes é preciso um estômago forte para o ouvir. Não é sequer particularmente bonito: nada daqueles deuses eslavos loiros, altos e esbeltos.
José - o marido em questão - é professor de filosofia na Universidade. Especialista em Kant, incapaz de responder "quatro" se alguém lhe perguntar "quanto é dois mais dois?" Começa por dizer que "dois é um mais um, dois mais zero, quatro menos dois ou quinhentos e oito menos quinhentos e seis. A qual deles te referes?" Depois explica que mais é o contrário de menos; que uma multiplicação pode ser vista como uma sucessão de adições. Diverge para explicar que adição em matemática ("ou álgebra") é diferente desse neologismo-anglicismo-palavra-a-evitar porque temos"dependência"; volta ao tema inicial para afirmar que a maioria dos autores aponta para "quatro", mas quando chega aí tu já esqueceste a pergunta inicial e estás a sonhar com um café, ver se acordas.
Eu sou "doméstica". É a primeira vez que engano o José. Ou qualquer outro dos poucos que o precederam, de resto. Isto não é bem verdade. O que é "enganar"? Ao meu casamento a minha amiga Ruth chama (erradamente, mas isso não é para aqui chamado) "Paz podre". Percebo o que quer dizer e não a interrompo enquanto penso naquele bruto atarracado que um dia me sentou na banca da cozinha, afastou-me as cuecas para o lado e penetrou-me com a energia de um camartelo. Não percebo sequer como já estava eu tão molhada, tão pronta a recebê-lo ("Parece manteiga", foi a observação dele. "No Verão", acrescentou, com medo de que eu não tivesse percebido a alusão).
As obras estão quase a acabar. Demoraram mais tempo porque foram interrompidas várias vezes por dia - nem sempre, apresso-me a esclarecer, na bancada da cozinha. Um dia levei-o para o quarto da "paz podre", que nessas ocasiões deixava de ser pacífico e - ainda menos - podre.
Hoje disse-lhe:
- As obras estão quase a acabar. Que vai ser de nós?
A resposta foi a mesma do primeiro dia:
- Vai brincar com o caralho do teu marido e deixa os meus sentimentos em paz.
..........
Yuri aprendeu português nas obras. Para ele "caralho" não é a mesma coisa do que para mim. Eu sei, mas faço como se não soubesse.
- É com o teu que quero brincar.
- Há sentimentos por trás dele, sabes? - Traduzo o seu português aproximativo, mas não o sentido do que me diz. Na Ucrânia Yuri era professor no liceu, ensinava ucraniano. Um dia perguntei-lhe:
- Porque não falas melhor português? Tens bagagem para isso.
- Não preciso de bagagem para deitar paredes abaixo.
- Precisas para me foder.
- Vou pensar nisso.
Aquela massa compacta de músculos escondia sentimentos de cuja existência era impossível suspeitar vendo-o manejar a maça e o cinzel, ou aplicar cimento com a colher. Nem na cama era fácil descobri-los. Yuri usava o silêncio como cimento por cima de tijolos e tinta por cima do cimento: camadas e camadas de vidas, fugas, andanças, placas geológicas sobrepostas, granito em cima de granito por baixo de basalto. O único modo de comunicação com ele era o tempo. Esperar. Esperar que ele se viesse (perguntava, serenamente, "posso vir-me?") esperar que ele falasse ("Não te quero chatear com as minhas histórias...").
Uma coisa aprendi: não era preciso esperar que ele sentisse. Imaginem-se a escalar uma montanha, espetar um piton numa falha e ela gritar "ai, magoaste-me". Dois meses depois, com sorte, mas a dor estava lá, imediata.
........
Um dia disse-me:
- Vivo ao retardador.
Assim mesmo, literalmente, sic, verbatim, o que quiserem: "Vivo ao retardador". Estávamos em casa dele, um tugúrio de vinte metros quadrados dos quais metade estavam ocupados por livros e por discos. "Salto de uma biblioteca para outra", pensei. "Mas não de uma pila para outra".
(Cont.)
É pedreiro; faz obras em casa das pessoas. Quer deitar uma parede abaixo? Aumentar a cozinha? Descobrir o que a prende ao seu marido (ou agora se desprende)? Cimentar o seu casamento? Deitá-lo abaixo de uma vez por todas? Chame o Yuri. Ele trata de tudo. Não fala muito bem português, ainda; por vezes é preciso um estômago forte para o ouvir. Não é sequer particularmente bonito: nada daqueles deuses eslavos loiros, altos e esbeltos.
José - o marido em questão - é professor de filosofia na Universidade. Especialista em Kant, incapaz de responder "quatro" se alguém lhe perguntar "quanto é dois mais dois?" Começa por dizer que "dois é um mais um, dois mais zero, quatro menos dois ou quinhentos e oito menos quinhentos e seis. A qual deles te referes?" Depois explica que mais é o contrário de menos; que uma multiplicação pode ser vista como uma sucessão de adições. Diverge para explicar que adição em matemática ("ou álgebra") é diferente desse neologismo-anglicismo-palavra-a-evitar porque temos"dependência"; volta ao tema inicial para afirmar que a maioria dos autores aponta para "quatro", mas quando chega aí tu já esqueceste a pergunta inicial e estás a sonhar com um café, ver se acordas.
Eu sou "doméstica". É a primeira vez que engano o José. Ou qualquer outro dos poucos que o precederam, de resto. Isto não é bem verdade. O que é "enganar"? Ao meu casamento a minha amiga Ruth chama (erradamente, mas isso não é para aqui chamado) "Paz podre". Percebo o que quer dizer e não a interrompo enquanto penso naquele bruto atarracado que um dia me sentou na banca da cozinha, afastou-me as cuecas para o lado e penetrou-me com a energia de um camartelo. Não percebo sequer como já estava eu tão molhada, tão pronta a recebê-lo ("Parece manteiga", foi a observação dele. "No Verão", acrescentou, com medo de que eu não tivesse percebido a alusão).
As obras estão quase a acabar. Demoraram mais tempo porque foram interrompidas várias vezes por dia - nem sempre, apresso-me a esclarecer, na bancada da cozinha. Um dia levei-o para o quarto da "paz podre", que nessas ocasiões deixava de ser pacífico e - ainda menos - podre.
Hoje disse-lhe:
- As obras estão quase a acabar. Que vai ser de nós?
A resposta foi a mesma do primeiro dia:
- Vai brincar com o caralho do teu marido e deixa os meus sentimentos em paz.
..........
Yuri aprendeu português nas obras. Para ele "caralho" não é a mesma coisa do que para mim. Eu sei, mas faço como se não soubesse.
- É com o teu que quero brincar.
- Há sentimentos por trás dele, sabes? - Traduzo o seu português aproximativo, mas não o sentido do que me diz. Na Ucrânia Yuri era professor no liceu, ensinava ucraniano. Um dia perguntei-lhe:
- Porque não falas melhor português? Tens bagagem para isso.
- Não preciso de bagagem para deitar paredes abaixo.
- Precisas para me foder.
- Vou pensar nisso.
Aquela massa compacta de músculos escondia sentimentos de cuja existência era impossível suspeitar vendo-o manejar a maça e o cinzel, ou aplicar cimento com a colher. Nem na cama era fácil descobri-los. Yuri usava o silêncio como cimento por cima de tijolos e tinta por cima do cimento: camadas e camadas de vidas, fugas, andanças, placas geológicas sobrepostas, granito em cima de granito por baixo de basalto. O único modo de comunicação com ele era o tempo. Esperar. Esperar que ele se viesse (perguntava, serenamente, "posso vir-me?") esperar que ele falasse ("Não te quero chatear com as minhas histórias...").
Uma coisa aprendi: não era preciso esperar que ele sentisse. Imaginem-se a escalar uma montanha, espetar um piton numa falha e ela gritar "ai, magoaste-me". Dois meses depois, com sorte, mas a dor estava lá, imediata.
........
Um dia disse-me:
- Vivo ao retardador.
Assim mesmo, literalmente, sic, verbatim, o que quiserem: "Vivo ao retardador". Estávamos em casa dele, um tugúrio de vinte metros quadrados dos quais metade estavam ocupados por livros e por discos. "Salto de uma biblioteca para outra", pensei. "Mas não de uma pila para outra".
(Cont.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.