23.12.18

Café

É um homem lacónico, de fala e feições. É o Senhor Tavares. Trabalha numa loja de café que se não estou em erro se chama Chaimite, na Duque d'Ávila. A escolha não é muito vasta mas a qualidade de cada um dos cafés que alí está é garantida.

Isto para reclamar contra esta porcaria desta invenção do café expresso. Não me refiro àquilo que vem dentro de cápsulas de alumínio e a que a burguesia internacional (actual e pretendente) se rendeu. Isso tem café no nome, mas está para o bom café como a Ana Malhoa para a Monserrate Figueras. Não. Refiro-me às máquinas de fazer bicas, cuja única função na sociedade parece ser extrair do café o que ele tem de pior, a uma temperatura demasiado elevada e em quantidades demasiado pequenas (há excepções, quando as máquinas estão bem afinadas, mas são raras e a afinação dura pouco tempo; e de qualquer forma o DV não é um Compêndio do Bom Cafezeiro).

Quando em 1974 cheguei a Portugal e pedia uma bica ainda me perguntavam "de máquina ou de saco?". Isso infelizmente desapareceu, o que só demonstra que o mundo não caminha necessariamente para melhor (e hoje lamento amargamente não ter ainda, nesse ano, tido o Sr. V. como armador; só aconteceu em 1975 ou 6).

O Sr. V. era um cafeeiro de Angola que em Portugal se dedicou à construção civil e me deu o meu primeiro emprego de skipper. Era numa lancha de 35', uma Princess com a qual passava fins-de-semana (e às vezes semanas interiras) no Portinho da Arrábida e que logo na primeira viagem para o Algarve partiu um hélice. O que sei de café aprendi com ele. Pelo menos as fundações, bastante sólidas. O resto veio por auto-aprendizagem.

Já aqui contei a história, mas este blog está a menos de uma semana de fazer quinze anos e já pode permitir uma certa repetição. Foi em Salvador, em 2007 e o sítio chama-se (ou chamava-se) Camafeu de Oxossi. Levaram-me lá porque "tu gostas de café e ali vais beber o melhor café de Salvador". Era um understatement: foi o melhor café que jamais bebi tirado de uma máquina expresso. Não resisti à timidez e fui falar com o senhor: felicitá-lo e sobretudo perguntar-lhe porque é que ele tinha café tão bom e os outros não. Trocámos meia dúzia de frases (pelas quais fiquei a saber que ele demorara um ano até encontrar um bom fornecedor de café e quem lho torrasse como deve ser). A certa altura pergunta-me de onde vem o meu conhecimento de café. "É o primeiro cliente que me entra a qui e sabe que o meu café é cem por cento arábica".
- Tive um excelente professor.
- Ah sim? Quem?
- Um senhor que era cafeeiro em Angola e foi o meu primeiro armador.
- A sério? Como é que se chamava? Eu também fui cafeeiro em Angola.
- Chamava-se V.
- V.????? Era o meu melhor amigo!

Vivam o café e a amizade, abaixo a bica!

PS - Por um amigo israelita com quem a certa altura co-habitei em Antigua aprendi a fazer café "à árabe". Não é rigorosa, mas é suficientemente próximo: pôr uma panela ao lume (com água fria) e nela deitar o café. Aquecer até estar quase a ferver, mas não deixar ferver, nunca em caso algum, sob pena de morte pelo deus do café. Há quem o filtre para servir, mas não me importo muito com as borras, antes pelo contrário: deixá-las pousar é um dos prazeres da bebida. Não é tão bonito como um balão, mas pelo menos faz uma coisa decente. E se se acrescentar uns grãos de cardamoma fica ainda melhor.

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