6.12.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-12-2018

A história é muito complexa, um verdadeiro puzzle. Começa por o Antiquari estar aberto apesar de hoje ser feriado. Acabei por lá parar a beber um vermute ou dois. Este café é o equivalente do Tati em Palma, infelizmente sem o jazz do Gonçalo. À frente está uma igreja, importante e imponente, há pouco promovida à categoria de basílica. É uma das mais importantes e antigas de Palma. Um senhor activa-se a lixar, com um utensílio eléctrico, a porta das traseiras, a que dá para o café. Saí de casa com a intenção de trabalhar e o raio do barulho da lixadeira desconcentra-me mais do que os vermutes me concentram.

Faço uma observação (bonacheirona) à empregada:
- O homem vai ficar ali o dia todo?
- Espero que sim. - Poucas coisas há que aprecie mais do que uma ironia bem colocada. Ela tem razão: rir é o melhor remédio, claro. Pouco tempo depois a rapariga volta e explica-me  que os trabalhos são devidos à vinda de um "padre" (aspas porque cito, traduzido do espanhol cura) de Roma e querem ter a igreja em condições.

Bem, isto acontece em todo o lado, até na Santa Madre Igreja: não se mostra a outrém a merda em que vivemos.

- Mas não lhe deram as tintas. O homem não sabe o que fazer. - Ora se há coisa de que a dita Santa Igreja não tem falta em Palma (e provavelmente no resto do Universo todo inteiro) é massa, guito, carcanhol. Houve ali incompetência, simples esquecimento ou o cura de Roma não é assim tão importante que justifique uma demão de tinta na porta das traseiras da Basílica?

Não sei, obviamente. Assim que de repente me lembre nunca sequer lá entrei, quanto mais privar com o manda (ou troca)-tintas. Sei que o barulho continua até o N. entrar no café, em cuja casa vivi quando pela primeira vez estive em Palma. É do outro lado da rua, mas não falamos da porta da Igreja ou dos déboires do pintor sem tinta. Falamos do trabalho dele (é restaurador de móveis, mas agora evoluiu para restaurador de tudo e mais alguma coisa, desde cerâmicas do Picasso a adagas do século XIX), do meu trabalho, de bicicletas - N. é um ciclista amador a sério -. Tem uma bicicleta para vender que a priori me parece melhor do que a minha Órbita Estoril II (que os senhores da Órbita me perdoem, mas não é difícil). Amanhã vou experimentá-la. N. ajuda-me a vender a Órbita, pelo que em princípio a operação será neutra de um ponto de vista financeiro, se não contarmos o período de sobreposição das duas burras.

A ver, como dizia o nosso amigo velhinho.

A verdade é que com a conversa do N. deixei de ouvir o barulho do pintor e hoje é feriado e quando lá cheguei (ao Antiquari) pensei que a Igreja estava a fazer pessoas trabalhar a um feriado, mas depois lembrei-me de que a Igreja trabalha especialmente aos domingos e feriados e portanto para ela isto não é nada de excepcional. "Espera, é", diz-me um dos muitos narradores que se escondem nas traseiras das minhas sinapses: "o feriado é político, não é religioso". Começa um diálogo: "no código genético da Igreja não todos os feriados são religiosos". "Certo, mas não se deve fazer barulho aos feriados à frente do melhor café da cidade quando alguém lá vai para trabalhar". "Pois. Mas define barulho: mal começaste a conversar acabou o barulho".

Bom, despedi-me do N., montei na minha bicicleta "elástica" (adoro esta expressão tanto quanto detesto aquilo que ela designa) e vim passear. Encontro a L., que no Inverno deixa de vender bijuteria e vende camisolas, xailes, luvas, gorros e por aí fora em lã ou em alpaca. Ficamos à conversa - conseguiram finalmente um apartamento longe de Palma, o D. tem um carro, o G. (o músico que conheci em Antigua há sete anos e por intermédio de quem conheci esta malta toda) esteve em Palma - e acabo, finalmente a beber um vermute ou dois no Ca na Chinchilla. O tablet está configurado e funciona, tenho ficheiros e programas e posso, portanto, escrever disparates.

Os quais me faltam muito, isto tem andado um bocadinho escasso, não por falta de vontade de os debitar, longe disso, mas sei lá, por outras razões quaisquer que agora não me saem, talvez por não serem disparates.

De maneira agora bebo os meus vermutes na Chinchilla, salvo seja e penso como seria Palma se tivesse um bocadinho mais de cultura, só um pouco, um café Tati, uma livraria Snob, uma Ler Devagar, um Procópio (está encavalitado em duas categorias: Bares e Cultura), um Povo, as Primas Terças e por aí fora.

Imagine-se uma cidade onde não há um terço do barulho de Lisboa, onde as bicicletas são bem vindas - até nas lojas, um gajo entra com a bicicleta e toda a gente acha normal - mais pequena do que Lisboa, limpa, com os pavimentos das ruas em bom estado, cosmopolita - e a tudo isto junte-se-lhe a oferta cultural de Lisboa.

O que me leva a pensar que nunca me tinha apercebido desta minha necessidade de cultura, mas enfim. venha um vermute, Angel.

(Não é bem verdade, eu sei. Mas o DV não é um registo histórico. É ficção.)

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Hoje é feriado e a Rambla começa a encher-se de gente. A porcaria das compras de Natal espanta-me: gosto de dar presentes, de oferecer bugigangas, livros, roupa, flores, o que for. Por que raio de carga de água fazê-lo só numa altura do ano? É um pseudo-potlatch sem a dignidade dos verdadeiros (suponho. Nunca assisti a um). Vá lá que pelo menos as pequenas são giras, ao menos isso, desviam-me o pensamento das fealdade dos stands.

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I. foi trabalhar hoje, ver se conseguimos acabar a primeira demão até ao fim-de-semana. Uma coisa que eu pensava ia demorar três ou quatro dias (não por excesso de optimismo, mas porque seria o normal) já vai em mais de duas semanas. Deixei de fazer previsões de datas. As coisas fazem-se e quando estão prontas estão prontas. Nunca pensei que o meu amado P. fosse um tão bom professor de Taoísmo.

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E. e eu estamos a pensar organizar um jantar literário na Volta Dos. Há vários problemas a resolver, entre os quais o dos idiomas. Só inglês, ou inglês, francês e espanhol? Se pomos francês temos de pôr alemão também. Só inglês e alemão?

Temos de encontrar um autor e livros para todas as línguas? Fazemos uma mescla? Se for só inglês tem de ser relativamente acessível para todos os não-anglófonos.

Enfim, hoje ocorreu-me que seria mais fácil fazer um só em espanhol no Antiquari. A H. não deu pulos com a ideia de o fazermos no Smack (em francês). Não sei, estas coisas parecem uma agulha magnética à procura do Norte: andam de um lado para o outro até acertarem.

Pelo sim pelo não comprei duas versões do Khayyam em espanhol. Na livraria (a Babel, claro) comento a quantidade prodigiosa de traduções que os espanhóis têm. "É verdade", responde-me o mais velho dos dois vendedores. "Vocês em Portuga falam muito mais línguas. A vossa burguesia é muito mais culta do que a espanhola. E então da catalã nem se fala!"

Aos olhos dos outros, deixámos definitivamente de ser o país de onde vêm as mulheres a dias e os pedreiros.

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