19.5.20

Medo: conta, peso e medida

O eixo das conversas desloca-se pouco a pouco do vírus ele-mesmo para o medo, coisa que agradeço a todos os santos: sei mais de medo do que pedaços de células que se incrustam onde não são chamados. A verdade é que sou um tipo medroso. Tenho frequentemente medo: nas três ou quatro vezes em que tive de brigar na rua; quando vou num automóvel depressa de mais (sobretudo se for eu a conduzir); mesmo a bordo, quando estou numa situação complicada não tenho medo na altura. Mas isso é por simples falta de tempo: tenho-o depois. Aconteceu-me quando uma corrente do ferro, toda embrulhadinha para poder ser arrumada onde fosse preciso peso me passou a milímetros da cabeça (tínhamos largado das Saintes-Maries-de-la Mer, entrou um mistral e estava em baixo a pôr as botas quando fizemos a primeira de três cangochas. Na terceira vi a praia, apesar de estar uma noite «escura como o pecado», aí a duzentos metros e disse ao gajo do leme que se fizesse mais uma talvez não fosse má ideia escolher uma praia sem rochas). Não tive medo  nessa noite, mas na manhã seguinte aquilo acalmou e ainda hoje penso na maldita corrente. Ou depois do ciclone, quando entraram as vagas e os tripulantes não conseguiam governar. Fiz vinte e quatro horas seguidas de leme, aquilo passou, fui dormir e quando acordei só não tremia porque ainda estava demasiado cansado. Também tive medo depois da noite que passei com o facho da bóia na mão, era a única luz que tinha a bordo e estava no meio de uma frota de arrastões da costa, à espera que o temporal passasse. Se os medos a posteriori só me acontecem no mar, em terra tenho-os antes e durante (e às vezes depois) e não tenho vergonha nenhuma: sem medo já não haveria humanidade.

Vergonha será talvez deixarmo-nos paralisar pelo medo. E mesmo nisso a questão não é a vergonha, mas sim que a paralisia pelo terror anula a razão de ser do medo, que é pôr-nos em estado de alerta, aguçar-nos os sentidos e os reflexos. O medo é um mecanismo evolucionário mas em excesso torna-se uma falha da evolução.

O pânico colectivo de que estamos a sair é disso a prova mais do que evidente: vai custar-nos mais caro do que o que o provocou, tanto em vidas como em dinheiro.

Fiz muitas idiotices a bordo por ausência de medo, por exemplo quando era moda navegarmos sem os rizos passados e era preciso ir à retranca passá-los e digo que são idiotices porque nem depois tive medo. Só hoje, dezenas de anos depois, avalio bem a inconsciência e a estupidez - se bem tenham tido pelo menos a vantagem de me mostrar até ponde posso (ou podia) ir. Já me aconteceu uma vez ter de voltar para bordo agarrado à escota da grande, por estar de pé em cima da balaustrada a fazer qualquer coisa na retranca. A ausência de medo tem a sua utilidade, mas hoje sei que mais vale tê-lo - desde que com conta, peso e medida.

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