22.11.20

Diário de Bordos - Em voo, Genebra - Porto, 22/11/2020

Deixo Genebra com esta indefinível tristeza que voltar ao passado me provoca. Ainda por cima, esqueci-me de pôr um livro no saco e recomeço, re-recomeço a ler cartas antigas. As da D., Ch. L.... Parei aí. As cartas eram-me dirigidas, mas sinto-me como se estivesse a devassar a correspondência de um estranho. Fui eu quem fez a D. sofrer daquela maneira? Às da Ch. não tentei sequer decifrar a caligrafia, apesar de não ser nada do outro mundo.

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No avião, a habitual palhaçada do tracing. Desta vez, preenchi o papel com uma mistura de L'art de la Joie e sistema solar. A única excepção foi a companhia aérea: Air Maybe. Não que não tenha confiança na EasyJet. Tenho bastante. Air Maybe refere-se a outra coisa: era o nome que dávamos às companhias aéreas do Zaire, quando tínhamos de voar numa delas. E não estarei eu num Zaire emocional? Num de-Zaire? Que resta do amor quando ele se transforma em afecto? Será que a única diferença entre um e outro é uma pila erecta? Até quando? Quanto tempo me resta para dizer «amo-te» a uma pequena?

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Cepticismo nestes tempos de fé: voltamos a ser proscritos. Continuo, porém, a invejar os cépticos de antanho: bastava-lhes duvidar de Deus. Hoje, temos de duvidar de uma infinda quantidade de igrejas, fés, capelas, seitas. Não são tempos para um preguiçoso como eu.

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Comprei três mini-garrafas de vinho para poder viajar sem máscara. Antes bêbedo que mascarado, apesar do preço estapafúrdio.

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Em vez de tentarem «controlar» o vírus, os governos bem podiam tentar mudar a aceleração da gravidade. Nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado é uma brutalidade. Reduzam isso para metade. Já pensaram na quantidade de vidas que salvam? E de copos que não se partem?

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Em Portugal tenho imensas probabilidades de ficar rico, porque compro o totómilhões quase todas as semanas. Pouco menos do que as de morrer de Covid.

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Aterragem dentro de quarenta e cinco minutos. Einstein tinha absolutamente razão: nos aviões, o tempo pára.

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Começámos a descida. Às vezes pergunto-me se a minha relação com Portugal não é semelhante à que tenho com o meu passado. Respondo de seguida: «Portugal é o teu passado, estúpido.»

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E agora, que tanto gosto do Porto, eis-me aqui nele fechado. Uma dúzia de imbecis e uns milhões de cobardolas hipocondríacos coligaram-se contra a vida. Querem salvá-la, dizem.

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