31.5.21

Diário de Bordos - Bissau, Guiné, 30-05-2021

A fatiga começa a esbater-se, substituída pela depressão post partum. Isto é a entropia a fazer o seu trabalho: não houve entrada de energia, só houve saída. Duas sestas, uma pré e a outra pós-prandial, um almoço de Philadelphia steak (a versão americana do nosso prego) no Royal Hotel, o cinco estrelas onde consigo trocar dinheiro em cartão por dinheiro em notas a um preço que me parece elevado mas é o único que encontrei até agora (admitidamente, não procurei outro). Acessoriamente, tem sinal, coisa que o meu hotel não tem. O jantar foi no restaurante A Padeira Africana, um restaurante português cujo menu tem a variedade e originalidade dos de uma tasca de Lisboa mas que tem a vantagem de ter um bom vinho da casa, de o prego no prato ser correcto e a deprimente desvantagem de os empregados andarem de máscara. Ontem, no Dona Fernanda, o senhor pôs a coisa na cara quando me viu e substituíu-a por um sorriso daqui até à Lua quando lhe disse que não precisava daquilo para nada.

Contratei um táxi para me passear pela cidade. O chauffeur chama-se José, é muito alto e magro e disse-me (com aparente orgulho) a sua etnia, que infelizmente esqueci. Os táxis estão algures a meio caminho entre os do Zaire - uma espécie de museu de arqueologia industrial ao vivo - e os de Bujumbura ou Maputo, mais bem tratados. Estou à vontade com este sistema de táxis colectivos, um aproveitamento de recursos muito mais inteligente do que os nossos, em que uma pessoa ocupa o lugar de quatro. Cheguei ontem e não tenho ainda muito onde me apoiar, mas quando fui jantar o taxista perguntou-me se eu queria companhia, interpretei mal e disse que não e lá fui sozinho no carro. Paguei o triplo do que o homem do hotel me disse que ia pagar, devido a essa má interpretação. A pergunta referia-se a companheiros de viagem e não àquilo que primeiro pensei. 

Na União Soviética (ou melhor, em Nakhodka. Em Tuapse não me lembro) era ilegal andar sozinho no táxi, mas pagando os quatro lugares conseguia-se. No Panamá os táxis também são colectivos, mas eu alugava um ao dia, fiquei amigo do chauffeur e ainda hoje me lembro dele e me pergunto se está bem. Qualquer dia pergunto-lhe, saberá responder melhor, de certeza. Tenho uma lista de números de telefones de táxis por esse mundo fora de fazet inveja às páginas amarelas da galáxia. 

A arte da pirueta, da resposta rápida, da ironia não é tão valorizada aqui como no Zaire.

A pobreza num continente que tem o potencial deste é irritante, como é a do Brasil, por exemplo. Hoje comprei um livro de contos populares guineenses e duas cartas. Paguei uma pipa - não digo quanto por recato - após uma rápida barganha, que perdi, claro. Sou um teso, mas aos olhos do rapaz que vendia os livros na rua passo por milionário. O erro de que falava ontem é nos dois sentidos: eles vêem-nos como nós nos vemos quando aqui chegamos.

Em Moçambique, o meu Pai proibia-nos de pedir o que quer que fosse aos empregados, com a explicação - legítima - de que era ele quem os pagava e não nós, as crianças. Aprendi muito com Ele - quanto mais envelheço mais me apercebo disso e Lho agradeço - mas esta é uma das minhas mais queridas lições. Por muito que me tenha custado. É provavelmente ao meu Pai que devo este daltonismo, esta incapacidade de ver a cor da pele da pessoa com quem estou a falar. (O qual daltonismo ainda recentemente originou um episódio cocasse, de passagem seja dito.)

.........

Depois do jantar fui para o hotel, mas as duas sestas deram a sentir os seus efeitos e voltei a sair. Bebo caipirinhas no restaurante Papa Loca, uma espécie de reconstituição africana de um diner americano. O menu é chato como a cabeça de uma adolescente. Penso nos menus polifacetados dos restaurantes de Buja e digo-me "Pensas demais, rapaz. Tens demasiada carga no carrinho de mão da memória. As duas palavras chave são aqui e agora. Esquece todas as outras."

Obedeço.

PS - Uma brasileira duvidaria da ortodoxia destas caipirinhas. Eu aprecio-lhes a qualidade, esplêndida. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.