31.5.21

Diário de Bordos - Bissau, Guiné, 31-05-2021

A questão é simples: ou penso na glicemia e mando lixar-se a dor na anca, ou penso na anca e manda o açúcar para o raio que o parta. Faço como fez o outro com o bebê e mando os dois para o diabo que os carregue. Não vão ser uma algia idiota ou um açúcar invasor a impedir-me de viver a minha vida. Se ela tiver de ser mais curta, mais coxeante ou mais ou menos qualquer coisa, que seja. Vou ao Papa Loka beber uma caipirinha  (sem açúcar) e ando tão longe quanto consigo. O resto vai de táxi, que é para isso que eles servem.

Adenda: não precisei de táxi nenhum. Os comprimidos devem estar a fazer efeito.

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África sendo África, estou agora como estava quando cheguei: ainda não sei quando será a entrevista com o ministro. Será sempre assim: o tempo é sinuoso, por estas bandas. Como os meandros dos seus rios ou o andar das suas serpentes. Já gostei mais. Isto é: já tive mais paciência para suportar esta capacidade de nos pôr no nosso lugar. Em nenhuma parte do mundo que conheço "o que é" tem tanta força como aqui. É assim, ponto. A ideia de que se fosse diferente seria melhor não passa sequer um milésimo de segundo na mente de quem decide: é assim. Ouvir um político africano falar do bem comum (como ouvi hoje, com a ressalva de que não sei se era um político ou um funcionário) é tão risível como ouvir o Papa discursar sobre o Kama sutra. 

A lógica das interacções é diferente, obedece a outros critérios. Penso que tenho sorte, apesar de tudo: conheço essa lógica, sei interpretá-la e lidar com ela, sei que tenho stocks infinitos de paciência. Tal como sei que quero muito a este projecto, do qual tive a ideia há pouco menos de quarenta anos. Uma vida é muito tempo, tempo demais para a ceder à impaciência. 

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A vida é cara. O "hotel" onde estou (aspas para sublinhar a generosidade) custa o dobro do que custaria o seu equivalente em Portugal. As refeições são quase ao mesmo preço. Verdade que ainda não me aventurei pelos circuitos locais, mas o restaurante onde hoje jantei não deve ver muitos meninos das ONG (e muito menos funcionários das OG).

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Ninguém - nem uma porra duma anca - me tira o prazer de um passeio à noite por estas ruas largas, arejadas - há uma térmica que entra ao princípio da tarde e se esvai ao princípio da noite, mas parece-me que o vento de agora é sinóptico. Vejo a condução, muito mais ordeira do que a de Kinshasa mas mesmo assim excitante e tenho vontade de conduzir. As pessoas ignoram-me totalmente, que é o melhor sinal de segurança. Sou tão transparente como nas Caraíbas. Não há miúdos a perseguir-me nem homens a interpelar-me, há mulheres nas ruas. A tentação de deixar o modo "trópicos" é grande e cedo-lhe facilmente, com a excepção do atravessamento de ruas: aqui o automóvel tem a prioridade de um cavaleiro na idade média. 

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Foi em África que a hominização começou e a humanidade nunca parou de aqui regressar. Talvez no fundo seja na África sub-sahariana que se encontre o cerne do homem, com o que tem de pior e de melhor. A essência do homem, como diria um filósofo alemão. 

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