PERTENÇA
Escrevo
estas linhas em Mértola, numa noite de sábado, depois de um jantar no Tamuje.
Porque
menciono tudo isto? Porque, suponho, estas três coisas estão ligadas. Mértola, escrever
a um sábado o que tinha planeado escrever na quarta ou o mais tardar
quinta-feira, Tamuje. Não sei se já vos aconteceu chorar por estarem a comer uma
coisa excepcionalmente boa. A mim já, se bem raramente. Uma dessas vezes foi no
Tamuje, com um coelho em vinho tinto. Hoje aconteceu de novo com um ensopado de
cabrito. Chorar porque se está a comer algo de particularmente bom deve parecer
esquisito, eu sei. A mim parece, mesmo enquanto choro. É a comoção, a mistura
de sabores, este sentimento inefável de que algo nos liga à terra e essa
ligação tem – neste caso – um nome: senhora Ana Isabel. Quando esta senhora
morrer vai para o céu dos cozinheiros e para o céu dos apreciadores de comida e
provavelmente para muitos outros céus, não sei. Para os dois primeiros vai de
certeza. Só espero é que não seja muito em breve. Que a ceifeira leve o seu
tempo. Cozinhar cabrito é difícil: tem que se tirar o gosto a cabritum,
(a minha Mãe dizia carnum) sem tirar o gosto à carne e dar ao palato o
gosto dos condimentos. Há coisas que me fazem chorar e uma delas é um ensopado
de cabrito bem feito.
Mértola: a questão
é a da pertença. De onde venho? De onde sou? De onde quero ser? Uma vez morei
no Príncipe Real. Um sinaleiro fazia parar o trânsito todo para me deixar
passar na bicicleta. Sentia-me um misto de M. Hulot e Jean Gabin. Por causa
desse sinaleiro escrevi um texto sobre as emoções, sobre a pertença. Venho a
Mértola esvaziar a casa, na qual terei talvez dormido vinte noites em dois
anos. Ou terão sido trinta? Não creio. Pensei que seria fácil: foi só o hotel
de cinco estrelas mais caro que já experimentei. Não foi, não é. Isto é uma
casa, foi a minha casa, por pouco que tenha sido. Revolta-me ter de a deixar,
não pela casa mas por mim. Não quero. Somos de onde queremos ser e eu quero ser
de Mértola. Somos de onde estão as nossas coisas, somos de onde estão os
nossos, somos de onde estão as nossas memórias, somos de onde um dia nos
repousamos. Pode ser Mértola, Lisboa, Genebra, Palma, pode ser onde for – desde
que tenha um nome, uma latitude e uma longitude. Mértola tem essas coisas todas
e tem beleza. Não poderia ser de um sítio feio. Nunca serei de um sítio feio.
No armário estão
umas centenas de livros por ler, nas janelas cortinas rasgadas e comidas pelos
ratos, em todo o lado fotografias de mim e dos meus. Amanhã começo a desmontar
a casa e é como se começasse a desmontar-me: não quero. Não estou a deixar
Mértola: estão a arrancar-me Mértola de mim, a cru, sem anestesia.
Durante muito tempo
pensei que somos de onde estamos. Se estou no Panamá sou panamiano, se no
Brasil brasileiro, se na Itália italiano. Depois comecei a ver os limites dessa
teoria, que são sobretudo de ordem temporal e linguística. Para ser de algum
sítio tenho de lhe falar a língua e de lá estar alguns meses. (No mínimo, digo
agora sabendo que é n’importe quoi, três meses.) Ou seja: não sou de
onde estou agora, por acidente, acaso, desígnio ou – não é impossível –
vontade. Sou de onde quero ser, de onde estão as partes de mim que querem ser
«de mim», de onde me quedei. Mértola está cheio delas, de partes de mim, de
mim.
Partes de mim: a
música de Cecil Taylor que agora escuto. As fotografias para as quais tento
olhar de raspão, como se pusesse o dedo grande do pé na água para lhe ver a
temperatura e nada mais; as hierbas secas que bebo sem gelo porque não
há gelo. Os livros. Se Walt Disney me conhecesse faria a piscina do Tio
Patinhas com livros em vez de notas. A ideia de que amanhã começo a empacotar
tudo isto, como um assassino arruma os membros da vítima que decepou e cortou
em pedaços.
Não se pode dizer
que a cada partida cortamos um pouco de nós: para isso ser verdade, a cada
chegada juntaríamos um pouco a nós, não é?
É. Partir é um
desmembramento e chegar um re-membramento. Questão simples de os equilibrar.
(Gosto da palavra simples... É a melhor das ironias, das metáforas, dos
eufemismos, dos subentendidos.)
Bebimos, en la sombra,
Nuestros llantos
confundidos…
Yo no supe
cuál era
el tuyo.
¿Supiste tú cuál era el mío?
(Juan Ramón
Jiménez, in Diario de Poeta y Mar)
Assim se entra numa noite: pés juntos, mãos
serradas, tronco em pedaços, alma fragmentada em tantos bocados, cada um deles
à procura do sítio ao qual pertence.
Luís Serpa, Mértola, 23/05/2021
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.