20.8.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-08-2022

O plano é basicamente o mesmo: encontrar um restaurante perto da marina que não esteja a abarrotar, não seja demasiado caro e tenha doses pequenas. A primeira coisa que me veio à cabeça foi eliminada: não me apetece pedinchar uma meia dose de bife, nem comer ao balcão, nem estar apertado como numa lata de sardinhas (a má-fé é uma coisa muito bonita e deve ser acarinhada. Está muito longe e tem uma subida e as minhas pernas não dão para tanto). A seguir tentei o cubano da rua Caro. Cheio. O Naan, logo à frente. Ditto. Em Agosto Palma muda-se para a Alemanha e essas bandas e é preciso reservar mesa até para nos lembrarmos de um sítio para comer, quanto mais para lá ir jantar. Acabo na rua dos moinhos, numa coisa que não tem estrangeiros e tem bastantes mesas vazias. O empregado - um velho da minha idade - trata-me por cariño, demora horas a trazer-me o menu (levanto-me e vou buscá-lo, o que me vale um «estás com pressa» quando vem finalmente à mesa), torce o nariz quando peço duas tapas, propõe-me picanha, digo que não e acabamos nuns secretos. Preveni-o de que não como muito mas o homem deve estar perdido de bêbedo. Traz-me um prato enorme. A carne não é má mas não vale a do Xisco, no Mercat de l'Olivar. O homem esqueceu-se do chimichurri e os secretos já vão a meio, isto é, estão perto do fim. Pergunto-me como conseguia comer tanto, nos tempos em que comia. Para o preço não se pode dizer que estaja mau. O lugar é feio como uma cirurgia estética falhada. Peço mais um copo de vinho tinto e deixo de pensar no jantar. Vou com o fluxo. Eles que demorem o tempo que quiserem. O chimichurri chegou, finalmente, com o copo de vinho e a minha mudança de disposição. Entrego-me tranquilo aos braços do tempo. Se quiser fazer cinquenta quilómetros por dia vou ter de treinar muito, muito com M maiúsculo, mas isso só atiça a minha vontade de o fazer.
O prato vai meio para trás, o que é pena, o restaurante (chama-se qualquer coisa do Paisi) vai para a lista, categoria B e não tarda eu vou para bordo dormir, tenho as pernas que parecem duas centrais nucleares prontas a explodir.

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Segunda-feira comprarei óculos para ler, está decidido. Este Inverno vou para as Caraíbas, digo-o com a firmeza de um alpinista que espeta uma bandeira no cume da montanha ou a do toureiro que mata o touro. As melhores decisões nascem nos sítios mais improváveis. Vou percorrer as ilhas todas desde Grenada até às Ilhas Virgens, ilha a ilha, como se fosse um adeus. E vou às ABC e se calhar a Trinidade e a outras onde nunca fui.

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O sacana do velho não vem levantar-me o prato. Queixa-se-me que não comi nada. Tenho a sensação esquisista de que vou acabar por gostar desta merda, um dia. Gosto das coisas que não são quadradas, que estão de viés, um bocadinho de lado. Das coisas e das pessoas, o que não facilita nada, mas enfim. Só é pena a comida não ser um bocadinho melhor, mas isto é a primeira vez que cá venho e portanto ainda pode mudar. A verdade é que ter níveis de comparação elevados dá nisto e os secretos do Xisco estão na categoria teológica «provas da existência de Deus».

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Vou contar até um e vou para bordo.

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