28.9.22

Neve negra

Espalho-me pela vasta noite com o passado a reboque. Pinto-a com amplas demãos do conteúdo do carro. Muito cedo, a escuridão atenua-se. O passado aligeira-a. O carro que puxo atrás de mim não fica, porém, mais leve. Cada pincelada da tinta clara de hoje é substituída pela mesma quantidade de outra, mais escura. Provavelmente, a que será usada para a noite de amanhã, se estivermos em periodo de alternância. Trago o carro - carroça seria um termo mais correcto - amarrado por um cabo à cintura. Caminho inclinado para a frente, quase deitado, como aqueles exploradores polares que se substituem aos cães de trenó. A noite - ou a neve - é escura. Aplico a tinta do passado sem qualquer ordem. A ideia do tempo em forma de espiral é falsa. Parece-se mais com lava em ebulição. 

A carroça afunda-se no lamaçal. Em breve será dia e o passado deixar-se-á substituir com alegria pelo presente e pelo futuro. Eu desfaço-me em minúsculos braços. Os traços de tinta são cada vez mais pequenos. O caminho vai-se desenrolando à medida que avanço. A neve continua negra.

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