A classe beta portuguesa está de parabéns. Tem - finalmente, tanto quanto sei - o seu encómio, o seu hagiógrafo, depois de só ler troça e maldizer a seu respeito. Trata-se do livro de Rita Ferro, a cuja apresentação vim, a terceira em três días. Ninguém me pode acusar de não ter uma visão panóptica da vida cultural portuguesa: Brevíssimo Dicionário dos Snobs. Lisboa, Cascais e muito mais.
Do livro, pouco tenho a dizer - os breves trechos que li têm piada, mas isso não é propriamente novidade para quem conhece Rita Ferro. O tema interessa-me relativamente pouco, mergulhado que estou no meio, por vias familiares. Na verdade, o snob português não é muito diferente do seu congénere francês, inglês ou alemão. É menos culto e mais teso, mas num país de incultos sem massa isso não é de estranhar.
A apresentação valeu, contudo, o tempo que me levou. Primeiro, porque foi agradável ver tantos betos tão ao mesmo tempo - sendo Portugal um país pequeno, eram todos primos uns dos outros; Foi uma grande reunião de família. Ainda por cima, estavam contentes: ouviam uma bem-humorada descrição de si próprios e nada como uma caricatura amigável para nos reconfortar no nosso lugar (os velejadores têm Mike Peyton, por exemplo). Depois, pelo local: o Museu da Água dos Barbadinhos, um edifício que não conhecia mas que saltou imediatamente para a lista de locais a visitar. Por fim, porque os últimos são os primeiros, pela companhia, uma amiga de longa data, senhora por quem nutro admirável admiração, para além da amizade.
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Depois da beta sessão fui jantar com M. C. ao Haweli. É bom saber que continua um grande templo da cozinha indiana, merecedor de peregrinações frequentes, apesar de ter subido um bom degrau na escada da evolução restaurativa. Já não é a tasca que era quando o conheci. De entre os mui vastos e diversos temas de conversa, retenho um: ela diz-me que nunca quis fazer amor com um determinado tipo porque não o queria perder como amigo. É uma explicação que oiço frequentemente - seja eu ou não o «determinado tipo», que tantas vezes sou - e na lista das desculpas esfarrapadas ocupa lugar cimeiro. No binómio sexo - amizade e resultantes quatro combinações possíveis tenho experiência de todas elas. Ao contrário do que se pensa, não há relação nenhuma entre sexo e amizade (como não há entre sexo e amor, mas essa é mais complexa. Fia mais fino, por assim dizer). Na verdade, no mercado dos sentimentos o sexo está sobrevalorizado. É um tema que não tarda vai parar ao lado dos betos na estante dos temas que passaram a data de validade. O jantar foi óptimo, a companhia também, vi (e apanhámos) uma chuvada como não via há muito tempo, a apresentação do livro teve piada e o seu local foi bastante bem escolhido, tive boas notícias sobre o meu projecto mãe de todos os projectos (é tão importante que me fez usar o termo projectos de novo, imagine-se) e - sobretudo - regresso a Lisboa como se nunca a tivesse deixado. Pela razão simples e inapelável de que nunca a deixei, nem ela a mim. Quando penso que por vezes encaro a hipótese de ir viver para outro lado qualquer percebo quão fora de mim sou capaz de estar, por vezes. Ir viver para fora de Lisboa ainda vá que não vá, desde que seja em Portugal. Mas fora do país? Credo, cruzes canhoto, te arrenego, vade retro. E mesmo assim, quanto fora? Quanto longe de Lisboa?
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Hoje recomeço as peregrinações médicas a Cascais. O raio da carcaça insiste em dar-me chatices. Ou melhor, em não se desfazer das chatices que dá há bastante tempo. Ainda pensei em fazer um seguro de saúde, mas agora que isso jé nem é apanágio de betos, não há gato-pingado que não tenha um já não tem interesse (isto é mentira, mas quem não sacrifica a verdade a uma piada, por medíocre que seja?) A evolução devia ter-nos dado um mecanismo de auto-regeneração mais eficaz do que o que temos, que serve para cicatrizar feridas e pouco mais... Sou injusto, eu sei. Na verdade, as minhas relações com o invólucro (de que o conteúdo faz parte, mas isso fica para depois) têm sido pautadas por uma espécie de respeito mútuo, de camaradagem viril: eu dou-lhe de comer e beber, não o submeto a esforços físicos exagerados (ainda me lembro da última vez que corri cinco metros seguidos), não o massacro com ginásios e similares e ele retribui com um bom estado geral e duas ou três picuinhices. Vou deixar de me zangar com ele, levá-lo a beber uns copos e assim selamos uma amizade que espero duradoura. Chama-se a isto «efeito Leonardo», reconciliação de largo âmbito provocada por um pedaço de carne que não pára de crescer e quero ver crescido.
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Em louvor do corpo: o olho esquerdo está a recuperar a um ritmo impressionante. Até já me esqueço das gotas.
(Provavelmente cont.)
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