5.10.22

Diário de Bordos - Palma a Barcelona via le Canet-en-Roussillon, 03 a 05-10-2022

Esta noite vi o clarão de Barcelona a sessenta milhas. Pensei logo nos fenícios, nos gregos e nos romanos. Com clarões visíveis a sessenta milhas esses sexistas esclavagistas não se podiam queixar e dizer que era difícil e isto e aquilo.

Claro que estou mesmo a ver: alguém me há-de vir dizer que naqules tempos não havia electricidade e portanto não havia clarões. Isso são desculpas de neoliberal explorador e subsídio-dependente. Se eu vejo a luz de uma cidade a sessenta milhas, os fenícios e os outros também as podiam ver.

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Fazer um quarto consiste basicamente em estar sentado na ponte de uma embarcação (se for de pesca ou de recreio. No comércio não é ou não era permitido sentarmo-nos) a olhar para o horizonte e tentar ver navios. Regularmente, olha-se para os instrumentos, ver se está tudo como deve estar e para as velas, caso não se esteja a navegar a motor. Nos intervalos olha-se para o céu, se for noite e estiver limpa, como agora está. Oríon saiu da água à uma da manhã, os Gémeos um bocadinho antes. Infelizmente, a porcaria do bimini tapa isso tudo. O "meu" P. não tem e nunca terá bimini e eu terei a noite inteira para mim.

Esta descrição é muito sintética e deve ser matizada. Por exemplo,  olhar para os instrumentos: sim. Mas eses devem servir para confirmar e afinar o que os nossos sentidos nos dizem e não o inverso. O melhor instrumento de navegação jamais criado é o conjunto de um cérebro e cinco sentidos. A parafernália electrónica, mais precisa sem dúvida, vem depois. Em regata, a ordem altera-se: primeiro as velas. Na pesca, primeiro os instrumentos e nestes dá-se a prioridade às sondas. A seguir vem o radar, para se saber onde andam os outros.

Estar de quarto consiste em regalarmo-nos com a beleza de uma noite como a que está hoje, apesar da ausência total de vento e pensar na sorte que se tem de poder fazer este trabalho. A viagem é curta, menos de trinta horas se as previsões se confirmarem - como até aqui - vai ser feita integralmente a motor e esta mistura de luz difusa (cada vez menos, estamos a aproximar-nos) do clarão de Barcelona, luzes dos navios - muitos cruzeiros - e escuridão de um céu por enquanto sem Lua e estrelas é de uma beleza avassaladora.

Estar de quarto consiste também em ter sono, ter uma vontade danada de ir para dentro dormir, olhar para a hora dez vezes por minuto e ficar surpreendido quando de repente é a hora e o camarada aparece na ponte.

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Chegámos a Le Canet-en-Roussillon às cinco da tarde. O tripulante enjoou e passou o dia no camarote, de maneira quando cheguei parecia um robot (eu, não ele). O sítio onde ficámos - a área técnica da marina - é muito perto do centro geográfico do deserto. Não há rigorosamente nada, nem um café, nem mesmo um quiosque nas imediações. Meti-me num táxi e fui jantar à cidade, ao restaurante La Cantina de Aldo, uma italianada surpreendentemente melhor do que é habitual. Foi o meu único contacto com le Canet, uma vila balnear que assim de repente me pareceu não ter ponta de interesse. Já em Perpignan tenho pena de não ter podido passar dois ou três dias, mas enfim. Não se pode ter tudo. A cidade já foi a capital do reino de Mallorca, um dos pontos importantes do catarismo e hoje é linda.

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Escrevo no autocarro, que saiu com quase quarenta minutos de atraso. Estou furioso com as minhas lacunas internetianas: há um comboio, mas só agora soube. Demora metade do tempo e tem muito menos atrasos. Só não sei quanto custa: não encontrei o preço...

A paisagem é linda, penso enquanto me pergunto se o autocarro vai chegar a tempo de eu não perder o avião. Ah, maravilhosa ambivalência...

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